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Antônio Maria, cronista maior da noite carioca, tinha lábia e porrada

Locutor esportivo, redator, criador de shows, publicitário, músico e jornalista pernambucano faria cem anos

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Uma cena típica dos anos dourados. O playboy Baby Pignatari provoca Antônio Maria à porta do Sacha’s —“já estão deixando crioulo entrar em boate?”— e parte para dar um tabefe nele, com a ajuda de dois brutamontes. Maria era forte, apanhou muito, mas também bateu. No meio da pancadaria, surge a frase famosa em reposta à ordem de Pignatari para que quebrassem suas mãos e o incapacitassem de escrever. “Vocês acham que eu escrevo com as mãos?”

Além de porrada, Antônio Maria era bom de papo. De lábia, como se costumava dizer no Rio de Janeiro dos anos 1950 e 1960, de cuja vida noturna, tanto em seu ponto máximo nas boates de Copacabana como na solidão da pequena classe média espremida nos apartamentos do bairro, Maria foi o maior cronista. Nesta quarta, dia 17 de março, transcorre o centenário de seu nascimento.

Para quem conviveu com ele nos bares e Redações de jornal, Maria tinha o mesmo dom de Otto Lara Resende. Conseguia ser mais sedutor falando que escrevendo —suas muitas namoradas que o digam.

Seu estilo de crônica foi definido por Paulo Francis. “Consistia em revelar o absurdo, a ironia de situações e pessoas que apanhava, formalmente, ao natural. Um pequeno twist na organização das palavras, aqui e ali, produzia o efeito, sem que a aparência de simplicidade se alterasse. Como qualquer profissional sabe, isso é muito difícil de fazer.”

Não surpreende, portanto, que Luis Fernando Verissimo, em garoto um leitor atento da geração que, na cola de Rubem Braga, deu em Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Carlinhos de Oliveira, escolha Antônio Maria como sua maior influência. Muito do seu rebolado Ivan Lessa aprendeu com Maria, de quem foi companheiro de farras e de pôquer e sócio num escritório de produção para a TV.

Locutor esportivo, redator, apresentador, produtor e diretor de rádio e televisão, criador de shows, publicitário, músico, cantor, compositor e letrista, humorista, cartunista e jornalista, o recifense Antônio Maria Araújo de Morais fez de tudo —e bem.

Foi artista multifacetado, ser humano complexo e angustiado. Viveu só 43 anos, até ser surpreendido por um infarto do miocárdio na rua Fernando Mendes, em Copacabana, a poucos passos do restaurante Le Ronde Point, o seu preferido para comer tornedores. Fregueses da boate O Cangaceiro, em frente, tentaram reanimar o escritor. Seu enorme corpo, de quase 1,90 metro e 130 quilos, ficou estirado na calçada até a chegada da ambulância.

Meses antes de morrer, andava numa maré baixa, tentando se recuperar profissional e sentimentalmente. Sua produção de textos revelava amargura e sofrimento, tendo ao fundo, mas não nomeada, a presença da bela Danuza Leão. Foi um caso célebre na época. Ela largara o marido Samuel Wainer, dono da poderosa Última Hora, para viver com Maria, um simples cronista do jornal —do qual, lógico, foi demitido.

A relação durou três anos, nos quais Maria se transformou num monstro verde de ciúmes. Em seu livro de memórias, Leão escreveu “durante esses anos em que vivemos juntos, abrimos mão dos amigos, dos desejos, do passado —do qual nenhum de nós podia falar; abrimos mão da vida". "Ele deixou de beber e de ser quem era; consequentemente, eu também. Por mais apaixonadas que sejam, duas pessoas que conversam somente entre elas —e sobre elas—, bem, uma hora fica difícil.”

Ele era o “menino grande”, que precisa dormir, como na canção que escreveu. Outros apelidos mais ou menos carinhosos –Tomba, Tombinha, Bom Maria, Meu Maria, Goody Mary, Antia Marônio, Fats Maria. Ou Galak, nome do chocolate branco que acabara de chegar ao mercado brasileiro —assim o chamava o desafeto Ronaldo Bôscoli.

Antônio Maria também era craque em dar apelidos. A cantora Aracy de Almeida virou Araca para sempre; o apresentador de televisão Flávio Cavalcanti, que em seu programa quebrava os discos de que não gostava, o Boca Júnior, devido à boquinha pequenininha; “malamadas”, as admiradoras do político Carlos Lacerda.

Na música, sozinho ou em parceria, deixou um punhado de clássicos –“Ninguém me Ama”, “Valsa de uma Cidade” e “Canção da Volta” (com Ismael Neto), “Manhã de Carnaval” (com Luiz Bonfá), “Suas Mãos”, “O Amor e a Rosa” e “Se Eu Morresse Amanhã” (com Pernambuco). Maria foi do grupo que reagiu à bossa nova, mas basta ouvir “Carioca 1954”, gravada por Dolores Duran, que se percebe que ele, de certa maneira, antecipou o movimento.

Entre 1950 e 1964, trabalhou para quase todos os jornais do Rio de Janeiro –O Jornal, O Globo, Diário da Noite–, fazendo um total aproximado de 3.000 crônicas. Na Última Hora viveu sua grande fase, assinando duas colunas diárias –Jornal de Antônio Maria e Romance Policial de Copacabana. Para esta, Maria fazia a ronda na delegacia do bairro, a bordo do seu Cadillac preto, recolhendo pequenos dramas urbanos e os transformando em alta literatura.

Antologias póstumas reuniram sua produção para a imprensa –“O Jornal de Antônio Maria”, organizada por Ivan Lessa; “Seja Feliz e Faça os Outros Felizes” e “Benditas Sejam as Moças”, por Joaquim Ferreira dos Santos; “Pernoite”, com textos publicados na revista Manchete. Todos os livros estão fora de catálogo, só encontráveis em sebeiros virtuais.

A Todavia prepara para novembro uma antologia de suas crônicas, que deve ter, além das conhecidas crônicas sobre a noite do Rio de Janeiro, novas descobertas feitas em jornais recifenses.

Os dois cadernos escolares com anotações escritas entre 12 de março e abril de 1957, editados em 2002 com o título de “Diário de Antônio Maria”, conseguem revelar ainda mais sobre ele do que suas crônicas e sambas-canções confessionais –as dificuldades financeiras, o medo da morte, o amor pelas mulheres, o remorso, a amizade, as gozações e as bebedeiras, a futilidade dos ricos e dos artistas. Neles, Maria aparece nu. E suado.

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