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Bolsonaro, político das redes sociais, é marca do niilismo, afirma Luiz Felipe Pondé

Colunista da Folha publica 'A Era do Niilismo', em que discute o surto psicótico que é a modernidade

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Belo Horizonte

O amabilíssimo Pável Ivánovitch Tchitchikov sabia conduzir uma conversa como poucos. Falava sempre no tom certo, nem alto nem baixo. Fosse esporte ou política, mas também criação de éguas ou vinho quente, o homem impressionava com sua oratória.

Tchitchikov, claro, era um pilantra.

A descrição do personagem de “Almas Mortas”, de Nikolai Gogol, foi escolhida para ilustrar a hipótese de que a modernidade é um surto psicótico generalizado e a mentira é seu modus operandi.

Tudo isso de acordo com Luiz Felipe Pondé, escritor e colunista deste jornal, que lança a tal hipótese em “A Era do Niilismo”, seu mais novo livro. Ele se apoiou em nomes como Theodor Adorno para explicar como uma espécie que viveu imóvel durante dezenas de milhares de anos e que a partir do século 19, que é quando surge o debate do niilismo, passa a se mover na velocidade da luz.

Para demonstrar seu ponto, Pondé passeia pela literatura russa —não só Gogol, mas também Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov e outros— para dissecar, numa nação que passou por um processo de modernização demasiado rápido, a anatomia patológica da natureza humana

Com a modernindade e a melhoria nos meios de comunicação, a humanidade pulou de um estado de busca pela salvação em direção a um grande vazio. “Na verdade, todo o conjunto de crenças era simplesmente falta de opção e imobilidade", diz Pondé.

Disse um certo alemão no tal século 19 que Deus está morto. Mesmo assim, nós continuamos uma espécie que busca salvação o tempo todo, diz Pondé. "Você busca salvação no coach, no marketing digital, nas lutas políticas."

“A era do niilismo depende da mentira como forma estruturada de comportamento”, escreve Pondé, que completa, em entrevista, que “a mentira mais profunda é não conseguir encarar que a modernização tem muito de surto psicótico”. Afinal, a experiência do nada é insuportável.

E esse niilismo tem ganhado forma com o atual cenário de likes, engajamento, branding e coaching. Enfim, o marketing —que é o niilismo em sua forma feliz e sociopata, afirma o escritor.

Pode ser propaganda de banco, faculdade ou de xampu, mas uma mensagem costuma se repetir nas telas, direcionadas a espectadores mais jovens. “Deixe sua marca”, sugere o anunciante ao coitado que o vê.

“Isso é pra deixar o cara psicótico”, diz Pondé. “Coitados dos jovens, eles não tiveram muito tempo desde que surgiram como categoria histórica de fazer muita coisa antes de virar produto.”

Além de potencialmente psicótico, esse jovem moderno, forjado no niilismo, tem uma tendência a demonizar as gerações anteriores, embora ele próprio não tenha lá tanta bagagem intelectual, e se radicalizar na história de que “o nada é o fundamento de tudo e portanto eu posso criar o que eu quiser em cima do nada, já que tudo é mentira mesmo, tudo é construção social, e você está construindo socialmente no Instagram, no Twitter, e isso pode ganhar eleição”, segundo Pondé.

E ganhou. Jair Bolsonaro é um dos frutos de uma geração marcada pelas redes sociais e pelo relativismo. Mesmo antes de ser presidente, o político já há algum tempo tem apoio dos jovens e se comunica bem na língua dos memes e das frases de efeito de redes sociais. Basta lembrar o “forte abraço, gamers” e os "oclinhos" escuros pixelados.


“Bolsonaro, que foi o candidato das redes sociais, é completamente uma marca desse niilismo. Ele governa e se comunica com a sua base pelas suas redes sociais. Numa lógica em que não existe verdade, tudo é uma narrativa”, diz o escritor.

Pondé ressalta, porém, que a ascensão de Bolsonaro não é o único sintoma. O conflito de gerações e o relativismo são fatores que vem crescendo junto com o niilismo desde o século 19.

“A boçalidade das novas gerações em relação ao conhecimento foi identificado em "Pais e Filhos" pelo Ivan Turguêniev em 1862 de forma muito clara”, lembra Pondé.

E os riscos que esse grande nada trazido pelo relativismo pode causar também já foram apontados no passado. “O relativismo sofista foi percebido já em Platão como ameaça. Não que ele não seja verdadeiro, mas quanto a sua potência de risco, de as pessoas não acreditarem em nada, tudo é narrativa. Se tudo é narrativa, se verdade é política, 'então vamo pro pau'”, diz o escritor.

Mas pode ser que esse mundo em que tudo é narrativa tenha levado uma chacoalhada. Pondé não descarta que o coronavírus, que já matou pelo menos 259 mil brasileiros, possa ter representado um choque a alguns, anteriormente fisgados pelo relativismo.

“A emergência da morte sempre pode trazer uma consciência concreta da experiência vida”, diz. “A vida apareceu como valor agregado de forma muito aguda.”

Se a pandemia trouxe algum baque significativo ao niilismo, só a história poderá dizer. Mas segundo Pondé, é bem possível que após uma atenuação da crise todos se esqueçam do que foi o coronavírus e voltem a agir como antes, só que em home office.

A Era do Niilismo

  • Preço R$39,90 (160 págs.)
  • Autor Luiz Felipe Pondé
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