Com 300 mil mortos por Covid no país, fotos mostram expansão veloz de cemitério

Leonardo Finotti fez imagens aéreas de covas abertas em SP desde abril, quando Brasil batia recorde de 58 mortes diárias

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Imagem aérea do cemitério da Vila Formosa do trabalho 'Necropoli[s]tics', do fotógrafo Leonardo Finotti

Imagem aérea do cemitério da Vila Formosa do trabalho 'Necropoli[s]tics', do fotógrafo Leonardo Finotti Leonardo Finotti

São Paulo

No dia 2 de abril do ano passado, o Brasil registrava o maior número de mortes num só dia até então —58, batendo o recorde anterior de 42 mortos em 24 horas. Pelo menos 299 brasileiros tinham morrido de coronavírus até aquele momento, segundo dados do Ministério da Saúde. Os números, hoje, poderiam soar como um alívio num país que bateu os assustadores 300 mil mortos pela doença nesta quarta. No dia anterior, foram 3.158 vítimas num só um dia, um novo recorde.

Foi no dia seguinte àquele recorde em abril que o fotógrafo Leonardo Finotti decidiu, ao lado da arquiteta Michelle Jean de Castro, registrar a movimentação do cemitério Vila Formosa, o maior da América Latina, na zona leste de São Paulo. O projeto, batizado de "Necropoli[s]tics", se estendeu ao longo da quarentena e registrou as centenas de covas sendo abertas. ​

O casal, que mora perto do Hospital das Clínicas, passou a ir com frequência ao cemitério desde o começo de abril. Decidiu fotografar o lugar com drones, acompanhando o voo dentro do carro, a partir do estacionamento.

"Isso passou a ser o termômetro que a gente tinha desse avanço da Covid no cemitério", conta Finotti. "É sempre muito difícil lidar com isso, porque, por um lado, você sente que deve fazer algo, que não pode ficar apático. Ao mesmo tempo, a situação mexe com muitas feridas que estão abertas."

O que se vê na série, que captou mais de 600 imagens aéreas, são áreas verdes que, num primeiro momento, se tornaram totalmente terrosas com a abertura de covas. Com a passagem dos meses, porém, esses mesmos espaços começam a ser tomados por uma vegetação rasteira, que cresce aos poucos. Toda a área parece ilhada em relação à cidade de São Paulo, onde o fluxo de carros cerca o cemitério.

O nome da série, "Necropoli[s]tics", mobiliza três termos centrais do trabalho —polis, ou cidade, política e necropolítica, conceito do filósofo camaronês Achille Mbembe, que estuda como governos decidem quem vive e quem morre.

Segundo o fotógrafo, o cemitério é simbólico tanto por ser o maior da América Latina, quanto por ter canalizado as mortes por coronavírus em São Paulo.

"Você pensa nessa imagem de uma cova rasa, multiplicada por 600, 800, que equivale a um quarteirão mesmo. Mas, quando você vê isso de cima, com o cemitério fazendo divisa com a cidade, começa a haver essa relação com o tamanho da cidade, e percebemos que é uma área muito grande", diz.

Além disso, a paisagem desse cemitério está sempre mudando —seja pela oscilação de temperatura, pela chuva ou pela falta dela, a vegetação sempre responde, dizem os artistas. Registradas ao longo dos meses, as fotografias dessas muitas metamorfoses do cemitério foram então sobrepostas numa montagem para mostrar, simultaneamente, as covas que foram abertas em períodos diferentes do ano.

"Comecei a tentar fazer uma imagem, um mapeamento, em que eu conseguisse juntar várias imagens para reconstruir o cemitério como um todo", diz Finotti. "A cada três meses, tentava reconstruir essas imagens, e, durante as idas ao cemitério, eu fazia fotos mais baixas nos lugares em que sentíamos que havia alguma mudança."

Sobreposição de fotos do cemitério da Vila Formosa do trabalho 'NECROPOLI[S]TICS', do fotógrafo Leonardo Finotti
Sobreposição de fotos do cemitério da Vila Formosa do trabalho 'Necropoli[s]tics', do fotógrafo Leonardo Finotti - Leonardo Finotti

"Essa imagem que a gente está criando é uma única de um ano de trabalho acompanhando essa evolução, o que não é tão simples de fazer, porque não foi algo linear", conta o fotógrafo.

Michelle Jean de Castro conta que a maioria das fotos foram feitas em momentos em que o espaço não tinha tanto movimento, de modo a evitar o sobrevoo do drone durante cerimônias já restritas de enterros.

Além da abertura de covas, eles acompanharam também a instalação de câmaras refrigeradas para armazenar os corpos. As covas na Vila Formosa estamparam páginas de grandes jornais internacionais —foi o caso do britânico Financial Times, um dos principais motivadores desse trabalho, segundo o fotógrafo, e o americano Washington Post.

Desde então, a paisagem devastadora do cemitério, com cada vez menos árvores, se tornou recorrente no noticiário e bastante conhecida pelo público. Mesmo assim, a dupla defende que a ideia do trabalho não é chocar com seu ineditismo, mas convidar as pessoas a refletirem sobre essas transformações e seus impactos a partir dos três eixos do título.

"Estamos dentro de casa, do apartamento, e esse tempo que estamos isolados nos fez questionar também para onde deveríamos olhar e atuar, no que esse trabalho poderia contribuir", conta Castro, que defende que a fotografia funciona como um mecanismo de memória desse ano pandêmico em São Paulo e no Brasil.

"A questão não é pôr o dedo na ferida, é pensar 'como vamos inverter esse gráfico?'", afirma Finotti, lembrando a curva ascendente de casos e mortos no Brasil.

A Bergamin & Gomide, galeria responsável pela venda das imagens, repassará o valor arrecadado pela série a projetos sociais que auxiliam pessoas em situação de vulnerabilidade na capital paulista.

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