Como Daniel Kaluuya, de 'Judas e o Messias Negro', dá vida aos seus personagens

Ator de 'Pantera Negra' e 'Corra!' tem chances de abocanhar um Oscar com papel de ativista negro assassinado pelo FBI

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Reggie Ugwu
The New York Times

Daniel Kaluuya avaliou a sala. Era o tipo de sala de reunião em Hollywood em que ele já tinha estado inúmeras vezes no passado, com iluminação perfeita, paredes brancas e cartazes de filmes clássicos nas paredes.

Kaluuya tinha ido ao complexo da Warner em Burbank, no estado americano da Califórnia, há dois anos, para uma leitura dramática de um roteiro que ainda não havia sido liberado para produção —“Judas e o Messias Negro”, um thriller policial e épico histórico sobre a queda de Fred Hampton, assassinado pela polícia em 1969, quando era um astro em ascensão entre os Panteras Negras.

Sentados ao lado de Kaluuya na longa mesa de reunião estavam seus futuros colegas de elenco, Dominique Fishback, Lakeith Stanfield e Jesse Plemons. Do outro lado, havia um grupo de figurões da Warner que tinham o poder de aprovar ou não o filme –Niija Kuykendall, vice-presidente executiva de produção de longas; Courtenay Valenti, presidente de produção; e Toby Emmerich, o presidente do estúdio.

Kaluuya, que interpretaria Hampton, estava apavorado. Pelos seus cálculos, ele só tinha realizado um quarto da preparação necessária para o papel, seu primeiro numa biografia histórica. E aquilo que ele fizesse na sala de reuniões seria comentado em todo o edifício, ele sabia disso.

O que ele não sabia era que havia muito mais em jogo. Os produtores haviam organizado a leitura dramática do roteiro como parte de um esforço para elevar o orçamento do filme em US$ 1 milhão. Uma boa recepção talvez convencesse o estúdio a assinar o cheque.

Na segunda metade da leitura, que durou horas, Kaluuya decidiu pôr todas as fichas na mesa numa cena em que Hampton discursa fervorosamente para uma multidão de ativistas inflamados. “Se vou morrer, será atirando”, pensou, e se levantou da cadeira para encarar o grupo. Com o coração batendo forte, ele entoou um grito de guerra que marcaria o trailer do filme. “Eu sou! Um revolucionário! Eu Sou! Um revolucionário! Eu sou! Um revolucionário!”

“Logo que eu o ouvi falar na voz de Fred, comecei a chorar”, disse Stanfield, que interpreta Bill O’Neal, o informante do FBI, o serviço de investigações americano, que trai Hampton.

“Todo mundo estava tratando o momento como uma leitura de roteiro, mas ele o tratou como uma peça”, diz Shaka King, diretor, roteirista e produtor do filme, que estava sentado diante de Kaluuya. “Havia só 20 pessoas na sala, mas ele interpretou como se estivesse fazendo a cena num teatro, para 300 pessoas, e como se sua voz tivesse de alcançar a fileira mais distante.”

Em apenas quatro anos, Daniel Kaluuya, de 32 anos, que cresceu num conjunto habitacional popular em Londres, conquistou espaço em Hollywood como um dos atores principais mais coerentes de sua geração.

Ele começou a carreira ainda menino, no influente drama adolescente britânico “Skins”, e foi indicado ao Oscar como melhor ator por seu primeiro papel principal nos Estados Unidos, o de intrépido sobrevivente de um culto racial secreto, em “Corra!”, grande sucesso de 2017.

Kaluuya seguiu aquele primeiro momento de sucesso com diversos desempenhos muito bem planejados e cativantes, numa mistura eclética de gêneros. Interpretou um guerreiro incerto no blockbuster internacional “Pantera Negra”, da Marvel, um vilão apavorante em “As Viúvas”, de Steve McQueen, e um namorado carismático em “Queen & Slim – Os Perseguidos”, filme sobre um casal em fuga. Não importa o papel, sua imersão profunda nele aproxima o espectador da tela.

Com “Judas e o Messias Negro”, ele estabeleceu um novo marco. Seu desempenho “aceita o desafio de encarnar e exorcizar tanto o monstro imaginado por Hoover quanto o mártir do movimento Black Power”, escreveu A. O. Scott, crítico do jornal The New York Times, acrescentando que Kaluuya “mais do que supera o desafio”.

Por seus esforços, Kaluuya recebeu um Globo de Ouro como melhor ator coadjuvante e é visto como favorito ao mesmo prêmio na disputa do Oscar este ano. Chegar a esse ponto exigiu que ele mergulhasse ainda mais fundo do que no passado e que cruzasse divisas históricas, físicas e emocionais complicadas como parte do processo.

“As pessoas podem dizer o que quer que venham a dizer sobre meu desempenho, e eu continuarei livre”, afirma Kaluuya, de Los Angeles, numa das duas conversas que tivemos por vídeo e telefone. “Dei tudo que tinha ao papel. Tudo. Tudo. Tudo.”

Kaluuya tem uma aura de confiança, um olhar penetrante e o que ele mesmo descreve como “um rosto africano gentil”. Para interpretar Chris em “Corra!”, ele teve de controlar sua energia natural, que se manifesta em conversa na forma de uma intensidade benevolente.

“Minha essência é mais parecida com a do camarada Fred, em termos de energia”, ele disse, falando de Hampton. Porque já interpretou americanos em tantos filmes, seu sotaque londrino de classe trabalhadora choca um pouco, inicialmente. É complicado imaginar um ator nascido na Inglaterra, filho de um imigrante ugandense, como responsável pela encarnação multidimensional de Hampton que aparece em “Judas e o Messias Negro”.

Kaluuya abordou sua interpretação de diversos ângulos simultaneamente. Ele se aprofundou nas influências formativas dos Panteras Negras, entre as quais obras de Frantz Fanon e Jomo Kenyatta. Deixou crescer o cabelo (“como pessoa negra, o cabelo é a forma pela qual você se vê, pela qual você se sente e pela qual você se presenteia”). Ganhou um peso considerável, e até começou a fumar temporariamente —“quando assisto a um filme, sempre consigo perceber quando alguém que aparece fumando não é fumante”, disse Kaluuya.

Mas o elemento mais complicado era a voz. Hampton, que foi criado em Chicago por pais que se transferiram para lá da Louisiana, na época da migração dos negros americanos do sul para o norte, era conhecida por sua entonação sonora e idiossincrática. Para a descobrir, Kaluuya começou pela experiência de vida do ídolo dos Panteras Negras.

Ele consultou a família de Hampton –especialmente Fred Hampton Jr., o filho de Hampton, e Akua Njeri antes conhecida como Deborah Johnson, noiva do ativista à época do assassinato. Também fez uma viagem de pesquisa a Maywood, o subúrbio de Chicago no qual Hampton cresceu.

Kaluuya visitou as casas em que ele morou na infância, as escolas em que estudou e os lugares em que discursava, e conversou com as pessoas que conheceu nesses lugares, incluindo alunos e outros membros do partido dos Panteras Negras, sobre a vida e o legado de Hampton.

“Um sotaque é só uma expressão estética do que está acontecendo do lado de dentro”, disse Kaluuya. “Eu tinha de compreender de onde ele tinha vindo em termos de espiritualidade e que mistura de crenças e padrões de pensamento permitiu que sua voz emergisse daquela maneira.”

Kaluuya refinou ainda mais o desempenho com a ajuda da treinadora de diálogos Audrey LeCrone e com um professor de ópera que o ensinou a condicionar as cordas vocais e a contrair o diafragma para as cenas dos grandes discursos. Quando a filmagem começou, ele se sentia capaz de dizer suas falas com o que sentia ser mais honestidade do que imitação.

O peso da história pende sobre cada cena do filme. Mas Kaluuya recorda um dia, em especial, como um dos mais difíceis de sua carreira.

O elenco e equipe estavam recriando a noite em que a polícia de Chicago entra atirando e mata Hampton, que estava dormindo e tinha sido drogado —O’Neal, o informante do FBI, pôs um barbitúrico em sua bebida no jantar. O dia da filmagem era o 50º aniversário da data.

“Foi uma noite difícil para todos nós”, diz Stanfield, intérprete de O'Neal. “A energia era tão densa que era fácil sentir.”

Kaluuya, que tinha trabalhado com afinco para criar e manter as barreiras entre ele e o personagem, sentiu que elas desmoronavam. Subitamente, ele estava vendo a cena não como um homem negro em 1969, mas como um homem negro em 2019, que acumulou mais meio século de informações sobre a dificuldade de sobreviver em um mundo branco.

O primeiro instinto dele foi reprimir a emoção que sentia surgir em seu interior. “Se você se deixa investir demais em seus sentimentos, isso pode começar a confundir”, diz Kaluuya. Mas em seguida, decidiu que o lugar daquelas emoções era a tela. Eram a última coisa que restava para dar.

“É nesse momento que as horas de trabalho se fazem sentir, que a técnica se faz sentir”, diz o ator. “Você não nega o sentimento, mas o usa, porque ele é a verdade.”

Tradução de Paulo Migliacci

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