Contardo Calligaris anunciou ida a Bacurau em provocativo título de uma coluna de 2019

Psicanalista citava uma comunidade diversa, alegre, com gosto por psicotrópicos e sexualidades inconformistas

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São Paulo

Contardo Calligaris falou sobre o filme "Bacurau", premiado em Cannes e onipresente nas conversas culturais dos brasileiros, em uma coluna de setembro de 2019.

O texto chamou atenção dos leitores com o provocativo título "Vou para Bacurau", já que esta era uma "comunidade com gosto por psicotrópicos e sexualidades inconformistas".

Leia a coluna "Vou para Bacurau".





“Pessoal, precisamos proteger as nossas crianças. Por isso, determinamos que os organizadores da Bienal recolhessem os livros com conteúdos impróprios para menores. Não é correto que elas tenham acesso precoce a assuntos que não estão de acordo com suas idades.”

Quando recebi cópia desse tuíte de Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, entendi errado. Ou seja, pensei que ele estivesse decretando o recolhimento imediato de todos os catequismos, impróprios para menores porque transformam as alegrias em culpas e as privações em méritos, porque atribuem mais relevância a um hipotético além do que à vida concreta da gente e porque se preocupam mais com as normas religiosas do que com as leis da natureza.

É uma regra da sociologia dinâmica: os boçais querem impor aos outros as normas que eles mesmos não conseguem respeitar. Da mesma forma, o catequizador exige dos outros uma fé que ele não tem.

Começamos, uns 700 anos atrás, com inquisidores e juízes que torturavam e queimavam os dissidentes para calá-los, claro, e mais ainda para calar os seus próprios pensamentos ímpios e suas dúvidas. Vai que, queimando quem diz que talvez Deus não seja trino, eu consiga esquecer minha perplexidade diante desse mistério incompreensível.

Agora temos censores que reprimem e perseguem para disciplinar dissidentes, claro, e, sobretudo, para silenciar seus próprios impulsos.

É uma evolução? Não sei. Queimar hereges ficou difícil no Brasil. Mas, curiosamente, o Brasil começou a se alinhar a nações fundamentalistas, que perseguem e executam com afinco tanto seus dissidentes quanto seus “pecadores”. Ainda não queimamos hereges, mas queimar livros parece que está na moda.

Voltando a Crivella, aliás, descobri logo que os assuntos que não estão de acordo com a idade das crianças não são, segundo ele, os catequismos religiosos.

O assunto inadequado, para Crivella, é o beijo gay —só não sei se o tal beijo não está de acordo com a idade das crianças ou com a idade de Crivella.

O fato é que sábado e domingo passaram num vaivém de decisões judiciais e grandes gestos de resistência, como o de Felipe Neto oferecendo livros de temática LGBT+ a todos que quisessem. No fim, evitamos o sucesso de um ato de censura assombroso, com fiscais na Bienal do Rio procurando os livros que Crivella acha “inadequados”.

Mas não é o caso de festejar. O Itamaraty censura “documentos que expliquem o motivo pelo qual o governo brasileiro passou a rejeitar, na ONU, o termo “igualdade de gênero” ou “educação sexual” em resoluções e textos oficiais”.

As alianças internacionais brasileiras com Arábia Saudita, Paquistão etc., desenham uma nova grande oposição, que é preciso entender e explicar, não entre fanatismos missionários rivais (como islã e cristianismo), mas entre, de um lado, todos os fundamentalismos e, do outro, a modernidade.

Enfim, sábado fui ver “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, pela segunda vez porque amei e, portanto, queria levar meu enteado, de dez anos —que também amou.

Na entrada do cinema, assinalaram que o filme talvez fosse impróprio para menores. Respondi que eu estava levando meu enteado na esperança de que, no filme, tivesse ao menos um beijo gay.

Ainda (e provisoriamente) vivemos num Estado democrático, e entramos no cinema.

Sem revelar nada aos que ainda não viram o filme, por que gosto muito?

Cresci com a ideia de que, como dizia Walter Benjamin, a esperança de mudar o mundo para melhor nos seria dada por aqueles que teriam perdido toda esperança: os miseráveis ou, no mínimo, os “injustiçados”.

Pois bem, Bacurau (para onde eu me mudaria com prazer, se o vilarejo aparecesse no mapa) é uma comunidade diversa, alegre, com respeito e gosto por psicotrópicos e sexualidades inconformistas —em suma, uma comunidade mais animada por um projeto hedonista do que por ressentimentos ou reivindicações.

Um dia o povo de Bacurau descobre que é dispensável. Mas prefere continuar vivo. Certo, os bacurauenses não são flores que se cheirem.

Mas como criticá-los: ainda bem que eles têm um passado no qual se inspirar…

Talvez o mundo esteja mesmo se dividindo segundo oposições novas. Por exemplo, a dos fundamentalismos de todo tipo (de Crivella aos aiatolás) contra a modernidade. Ou, outro exemplo, a do prazer de viver contra uma ganância psicopata.

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