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Livros

Contardo Calligaris, autor de 13 livros, cobriu de tudo, de A até quase Z

Pensamento do psicanalista e escritor reverberou nas colunas de jornal, na ficção, no teatro e na televisão

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Por mais de 20 anos, o leitor da Folha teve, a cada quinta-feira, encontro marcado com Contardo Calligaris nas páginas da Ilustrada. Mas a intimidade com a escrita vinha de muito antes de o psicanalista, morto em São Paulo nesta terça, aos 72, estrear no caderno, em 8 de abril de 1999, com um texto sobre o mito da violência adolescente.

Ter “um gosto pronunciado pela palavra”, não à toa, é um dos traços de caráter que Calligaris enumera, numa de suas “Cartas a um Jovem Terapeuta”, entre as qualidades que procuraria em alguém que desejasse seguir o ofício.

Neste que é provavelmente o mais popular dos 13 livros que publicou em sua carreira —sem contar os que escreveu em parceria— ele também recorda os inícios de sua trajetória, quando, já graduado em letras e dando aulas em Genebra, optou pela formação em psicanálise em Paris.

É natural que sua própria experiência permeie essas cartas; afinal, esse gênero de livros, em que um mestre se dirige a discípulos, trata justamente dessa transmissão. Mas a recorrência à biografia está em boa parte de seus escritos.

Lembranças de infância e juventude aparecem, por exemplo, em muitas de suas colunas de jornal que, selecionadas, renderam três volumes —“Terra de Ninguém” e “Quinta Coluna” saíram pela Publifolha em 2004 e 2008, e “Todos os Reis Estão Nus” pela Três Estrelas, em 2013.

Mas, se as reminiscências aparecem em suas colunas, ou crônicas, como gostava de chamar os textos semanais, o leitor assíduo sabe que seus assuntos formam uma vasta e variada relação.

Basta espiar a lista de temas numa das coletâneas para comprovar que ele cobriu de tudo, de A até quase Z –de aborto a vergonha, passando por reflexões sobre filmes, livros e séries, sexo, casamento, filhos e o próprio exercício da psicoterapia, sempre fazendo elos com a política e a sociedade.

A infância e a adolescência, compreendidas inclusive em seu aspecto de constructos culturais, são também temas recorrentes nas colunas.

Sobre a juventude, Calligaris escreveu “Folha Explica Adolescência” e, em breves 88 páginas, ajuda pais e filhos a passarem por essa transição, elucidada como uma espécie de rito em que o jovem tem de lutar para ser aceito no mundo adulto.

Também em seus dois romances, traços da vida do autor ressurgem, transmutados e ficcionalizados na biografia de Carlo Antonini.

O alter ego de Calligaris é, como ele, psicanalista. Um homem cosmopolita, com um fundo de melancolia estoica. Interessado nas mulheres, com um passado cheio de paixões, é também uma espécie de detetive acidental.

Não é de estranhar; há pontos de contato entre o trabalho do terapeuta e o do investigador. Ambos se dedicam a reconstruir narrativas, buscando pistas às vezes nos lugares mais improváveis.

“O Conto do Amor”, de 2008, e “A Mulher de Vermelho e Branco”, de 2011, não são, contudo, livros policiais stricto sensu. Mas são, ambos, movidos por enquetes que implicam um mergulho no passado —o de Antonini e de seus circunstantes.

No primeiro, o psicanalista procura tardiamente por explicações pela revelação incompreensível feita por seu pai, pouco antes de morrer, de que teria sido assistente do pintor maneirista Sodoma.

Antonini deixa Nova York, 12 anos depois da estranha conversa, com direção à Toscana, onde descobre uma perturbadora semelhança entre a fisionomia de seu pai jovem e figuras pintadas num mosteiro por Sodoma.

No romance, Calligaris também lança mão de sua erudição e de seu notável conhecimento de arte, tema, aliás, de um de seus primeiros livros, sobre pintura.

“Il Quadro e la Cornice: Courbet, Manet, Degas, Magritte, Duchamp: Per una Critica della Rappresentazione” saiu em 1975, pouco depois do livro que nasceu de seu trabalho de licenciatura em letras sobre Italo Calvino, de 1973.

No segundo romance, Antonini viaja a São Paulo e se vê envolto numa trama internacional na qual se cruzam os mistérios de uma paciente —a mulher de vermelho e branco do título— e um enredo mais próximo do policial, protagonizado por uma ex-namorada vietnamita que conhecera em Paris.

Mas talvez o traço mais revelador da biografia de Calligaris nesses livros não sejam os detalhes que compõem seu alter-ego —a profissão, as cidades onde viveu ou o passado do pai na resistência ao fascismo—, e sim um aspecto da trama.

Em ambos os romances, os personagens se debatem com a busca por cumprir o desejo do pai ao mesmo tempo em que se constitui, pelo seu próprio desejo, sua identidade.

Embora isso não esteja enunciado literalmente, os enredos de suas aventuras ficcionais ilustram de certa forma o conceito de “mandato paterno”, que denota a formação do autor na escola de Jacques Lacan.

No seu campo de atuação mais estrito, escreveu "Hipótese Sobre o Fantasma na Cura Psicanalítica", de 1986, e “Introdução a uma Clínica Diferencial das Psicoses", de 1989.

Fez sempre a tentativa de romper com certa mística da escrita lacaniana, que pode beirar o incompreensível até para psicólogos não iniciados nessa escola.

Nesse sentido, sua obra mais ambiciosa talvez seja “Hello, Brasil!”, ensaio em que põe o país no divã, numa complexa tentativa de o interpretar à luz de conceitos psicanalíticos, mas voltado para um público não especializado.

Entre 1991, quando “Hello, Brasil!”, e 2017, quando o livro teve sua segunda edição, muita coisa mudou. Inclusive o próprio autor, que não era mais um quase recém-chegado tentando compreender o novo país de adoção.

Mas, para ele, nada se alterara nas “categorias de fundo da subjetividade nacional”, como diria a este jornal, em entrevista sobre a segunda edição.

"O colonizador e o colono que falam em nós —em algum momento, comecei a tratar dos brasileiros como 'nós'— não mudaram”, disse então.

O primeiro era aquele que vinha saquear e devastar, buscando em terras alheias o gozo negado pela terra-mãe; o segundo, aquele que vinha fazer aqui um nome, se tornar cidadão.

Durante esses anos, Contardo Calligaris ampliou seu público e, cada vez mais, se aproximou do objetivo e do esforço que descreve na introdução à segunda edição de “Hello, Brasil!”.

“A formação psicanalítica na escola freudiana de Paris (a escola de Lacan), nos anos 1970, era excelente e instigante, mas uma calamidade com relação à escrita”, diz no texto.

“Os candidatos adquiriam o hábito de escrever não para serem lidos, mas para demonstrar aos colegas que conseguiam manejar a teoria lacaniana e imitar o estilo de Lacan. Era como se exibir a capacidade de usar a criptografia dominante fosse mais importante do que expor os tópicos tratados.”

Com o livro, ele reconhece ter começado a se “liberar desse vício”. A partir dali, suas capacidades de comunicador se ampliaram, e seu pensamento acerca das mais complexas questões escondidas no cotidiano reverberou nas colunas de jornal, na ficção, e mesmo no teatro e na televisão.

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