O psicanalista e escritor Contardo Calligaris estreou na Folha em abril de 1999, nesta Ilustrada, com o texto "Adolescentes, testosterona, espinhas e crimes". Abordou, na ocasião, uma pretensa onda de criminalidade juvenil que teria criado meninos "superpredadores", à la "Laranja Mecânica".
Calligaris bbordou, na ocasião, uma pretensa onda de criminalidade juvenil que teria criado meninos "superpredadores", à la "Laranja Mecânica".
"Imaginamos o adolescente como o nômade rebelde que desistimos de ser. Atribuímos a ele um cinismo que expressa nosso próprio desdém pela convenção social que detestamos, mas acabamos respeitando. [...] Eles são os agentes (oníricos) de nosso desprezo a nós mesmos", escreveu, rebatendo uma teoria do deputado americano Bill McCallum e quem mais dissesse que as novas gerações eram mais propensas à transgressão.
"Até hoje, eu pensava que estas imagens do adolescente-que-vai-te-pegar tivessem um fundamento real", admite ele, "suspiro de alívio: as constatações e previsões (idiotas) de McCallum e outros desta época são falsas e abusivas".
Leia abaixo a coluna íntegra.
Estamos em guerra contra os adolescentes. Certo, na tranquilidade das famílias, podemos mimá-los carinhosamente, mas nossa solicitude social é feita de desconfiança, medo e repressão preventiva.
Nos Estados Unidos é proibido comprar cigarros antes dos 18 anos e consumir álcool antes dos 21. Em certas comunidades vige um toque de recolher para adolescentes. Limita-se o direito há tempo concedido de dirigir aos 16 anos: só de dia, só indo para escola, não com outros adolescentes no carro etc.
Fato mais preocupante e universal: a cada crime cometido por um menor, pede-se que o réu pague como gente grande. "Quem tem idade para roubar, matar e estuprar tem idade para cadeia. Acabou a moleza."
As regras se justificam no interesse do adolescente (é bom que não fume, não beba). Ou no da sociedade. No entanto, proliferando, elas transmitem a sensação de uma urgência: precisa conter os adolescentes, sobretudo os meninos.
Eles nos apavoram: de "Laranja Mecânica" a "Kids", flertamos com a perspectiva de bandos nômades penteando as ruas da cidade em arrastões permanentes.
Até hoje, eu pensava que estas imagens do adolescente-que-vai-te-pegar tivessem um fundamento real. Afinal, as estatísticas americanas diziam que houve um forte pique de criminalidade juvenil em 95 e 96, logo quando baixavam todos os outros índices de criminalidade.
Nesta época, aliás, uma eflorescência de artigos e relatórios coagulou o retrato apavorante do adolescente como "superpredador". A palavra pegou e, junto com ela, pegaram algumas idéias:
1. Estamos lidando com uma nova criminalidade juvenil insensível aos controles morais e sociais que parecem conter a criminalidade dos adultos.
2. O número de adolescentes está crescendo. Nos Estados Unidos, em 2010 haverá 17 milhões mais do que agora.
3. Como adolescente é igual a superpredador, se não agirmos logo e duro, entregaremos nossas cidades a hordas bárbaras.
Este silogismo se alimenta da idéia de uma equivalência natural entre adolescência e tendências criminosas: a testosterona produziria crime junto com as espinhas.
Portanto, nos debruçando sobre nenês e meninos de escola maternal, é bom perceber atrás de suas feições (traiçoeiramente) infantis o riso cínico e sádico do futuro carniceiro.
Exagero? Apenas. Em 1996 o deputado Bill McCallum assim falava ao Comitê da Infância, Juventude e Família: "A legião de crianças que hoje tem 5 anos será os adolescentes de amanhã. É uma notícia terrível, pois a maior parte dos crimes violentos é cometida por adolescentes entre 15 e 19 anos". Juntem estes fatos demográficos e preparem-se para a geração que vem: os superpredadores.
Suspiro de alívio: as constatações e previsões (idiotas) de McCallum e outros desta época são falsas e abusivas. É o que mostra Frank Zimring —criminalista da Universidade de Berkeley— em "American Youth Violence" (Oxford University Press). Descobre-se que, de fato, nos anos 90, a violência adolescente seguiu a tendência geral de baixa. Aumentaram os efeitos letais desta violência, pela proliferação de armas de fogo entre adolescentes.
Também acontece que o adolescente é mais gregário do que o adulto. Portanto, mais adolescentes presos não significam mais crimes de adolescentes, pois em cada crime adolescente há em média 2 ou 3 réus.
Os 17 milhões de adolescentes a mais em 2010 nos EUA na verdade são proporcionalmente menores do que a percentagem atual de adolescentes na população. E por aí vai.
Conclusão: a vinheta inquietante do superpredador não é um efeito da realidade social. "Laranja Mecânica" poderia ter nos colocado, aliás, uma pulga atrás da orelha. O filme de Kubrick é de 1971, bem antes da pretensa onda de criminalidade juvenil de 1975. E o livro de Burgess é de 1962, época tranquila.
Mas de onde vem então o superpredador? Como acabamos acreditando nesta figura? Justamente Burgess (e Kubrick com ele) fascinava seu público propondo uma alternativa radical que está no íntimo de cada um de nós: de um lado a extrema rebeldia do protagonista adolescente, do outro a integração social apresentada como um condicionamento que nos desnatura.
A imagem do jovem predador que habita nossos pesadelos é filha desta alternativa. Imaginamos o adolescente como o nômade rebelde que desistimos de ser. Atribuímos a ele um cinismo que expressa nosso próprio desdém pela convenção social que detestamos, mas acabamos respeitando.
Recentemente passamos a recear que os adolescentes rebeldes também nos espreitem nas esquinas, nos ameacem de morte e saqueiem nossos bens. Não é de estranhar, pois eles são os agentes (oníricos) de nosso desprezo a nós mesmos.
É uma equação: quanto mais uma geração se decepciona consigo mesma, tanto mais ela sonha com adolescentes que castiguem sua própria preguiça e seu comodismo. E tanto mais, naturalmente, ela quer reprimir e conter estes adolescentes vingadores.
Um dia destes, se a gente não acorda, os adolescentes reais vão acabar comprando o papel que sonhamos para eles. Aí o pesadelo vai começar mesmo.
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