Contardo Calligaris publicou cerca de mil textos na Folha; relembre os melhores

Psicanalista, escritor e colunista estreou no jornal em abril de 1999 e escreveu até sobre a Olimpíada de Sydney

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São Paulo

Contardo Calligaris foi presença constante nas páginas da Folha por duas décadas, versando sobre os mais variados assuntos, de política nacional à estrangeira, da alta literatura à mais nova série do streaming, de momentos do passado a impasses e reflexões da contemporaneidade.

Morto nesta terça (30), aos 72 anos, o psicanalista, escritor e colunista estreou no jornal em abril de 1999, nesta Ilustrada, no texto "Adolescentes, testosterona, espinhas e crimes". Abordou, na ocasião, uma pretensa onda de criminalidade juvenil que teria criado meninos "superpredadores", à la "Laranja Mecânica".

"Imaginamos o adolescente como o nômade rebelde que desistimos de ser. Atribuímos a ele um cinismo que expressa nosso próprio desdém pela convenção social que detestamos, mas acabamos respeitando. [...] Eles são os agentes (oníricos) de nosso desprezo a nós mesmos", escreveu, rebatendo uma teoria do deputado americano Bill McCallum e quem mais dissesse que as novas gerações eram mais propensas à transgressão.

"Até hoje, eu pensava que estas imagens do adolescente-que-vai-te-pegar tivessem um fundamento real", admite ele, "suspiro de alívio: as constatações e previsões (idiotas) de McCallum e outros desta época são falsas e abusivas".

Começava ali uma frutífera parceria do ítalo-brasileiro com a Folha, que rendeu três volumes em que compilou suas colunas —ou crônicas, como as preferia chamar— de maior destaque. “Terra de Ninguém” e “Quinta Coluna”, editados pela Publifolha, saíram em 2004 e 2008, enquanto “Todos os Reis Estão Nus", da Três Estrelas, foi lançado em 2013.

Calligaris também abordou a transgressão em julho de 2012, em "Os outros que ajudam (ou não)", sob a ótica de pessoas viciadas ou com hábitos que desejam mudar, ao falar de exceções às quais nos propomos e que atrapalham nossos objetivos. "Por que os próximos da gente, na hora em que um reforço positivo seria bem-vindo, preferem nos encorajar a trair nossas próprias intenções?", questiona ele.

"Há duas hipóteses. Uma é que eles tenham (ou tenham tido) propósitos parecidos com os nossos, mas fracassados; produzindo nosso malogro, eles encontrariam uma reconfortante explicação pelo seu. Outra, aparentemente mais nobre, diz que é porque eles nos amam e, portanto, querem ser nossa exceção, ou seja, querem ser aqueles que nós amamos mais do que nossa própria decisão de mudar."

Com sua capacidade de se debruçar sobre os mais diferentes temas, Calligaris integrou os esforços da Folha para cobrir os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000. Falou sobre a experiência também em suas colunas, traçando paralelos entre o mundo esportivo e o artístico.

"Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro. O programa é uma declaração que diria: 'Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta'", escreveu em "A 'Tosca' e os toscos", de setembro de 2000.

Na cidade australiana, Calligaris assistiu à ópera que dá nome à coluna, na casa de espetáculos que é símbolo do país. "Nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões —cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados", escreveu sobre o que viu, fazendo, em seguida, uma provocação.

"Se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política."

Calligaris considerou a Austrália "uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante" e voltou a falar sobre o país em outras publicações.

Também em 2000 e como enviado da Folha, encontrou no Timor-Leste inspiração para novos escritos, mas não sem antes reportar os imbróglios envolvendo a tentativa da ONU de estabelecer uma democracia na ex-colônia portuguesa, controlada por anos pelo governo indonésio.

"'Será que o Timor-Leste deve mesmo ser independente?' Estava voltando de Dili, quando um amigo me colocou essa pergunta. Respondi, sem refletir, que não havia mais escolha", narrou ele numa coluna publicada dois meses após a viagem, "O paradoxo da razão e de Narciso".

"Em geral, aplaudimos a ideia de que todos têm direito de decidir seu destino. Que as pessoas e os povos escolham livremente se querem associar-se ou dissociar-se! Viva a autodeterminação. Por outro lado, acreditamos que a razão deveria sugerir caminhos de convivência e de harmonia universais. Compartilhando uma mesma faculdade de pensar."

Em seus últimos meses de vida, um assunto que parecia despertar especial interesse em Calligaris foi a reorganização da política americana depois da fracassada tentativa de reeleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos. Chamou, em fevereiro, a política do republicano de "showbusiness de sucesso e de grande competência".

"Houve uma espécie de alívio generalizado quando entendemos que Donald Trump perderia a reeleição. Muitos esperavam que ele perdesse não tanto pela mediocridade de suas ideias quanto pelo caráter boçal de seu estilo de governo", escreveu.

"Ou seja, a maneira de maltratar e fritar até os mais próximos de seus próximos, sua diplomacia de guerra permanente para não dizer uma guerra diplomática em que era possível o presidente, sem nenhuma mediação de conselheiro algum, sem ter interpelado o Congresso nem mesmo tangencialmente, nas altas horas da madrugada, de repente ameaçar os fundamentos básicos da própria convivência pacífica entre as nações."

Alternando entre a tempestuosidade dos cenários político, social e econômico do mundo em que vivemos e a leveza da arte e do entretenimento, Calligaris nunca limitou suas colunas a um mesmo assunto. Entrelaçava, com frequência e maestria, esses dois universos.

Em 2005, confessou sua paixão "inconfessável" pela música sertaneja nacional, segundo ele traduzida com maestria para a tela com "Dois Filhos de Francisco", biografia de Zezé Di Camargo e Luciano dirigida por Breno Silveira. "A história da dupla é um repertório quase completo dos temas de sempre da música country, que canta os sentimentos dos desterrados, ou seja, de todos nós, que vivemos na viagem entre a saudade e a esperança", escreveu.

Em 2019, foi mais um dos colaboradores da Folha a falar sobre "Bacurau", filme premiado em Cannes e onipresente nas conversas culturais dos brasileiros naquele ano. A coluna, claro, chamou atenção dos leitores, com o provocativo título "Vou para Bacurau", já que esta era uma "comunidade com gosto por psicotrópicos e sexualidades inconformistas".

"É uma regra da sociologia dinâmica: os boçais querem impor aos outros as normas que eles mesmos não conseguem respeitar. Da mesma forma, o catequizador exige dos outros uma fé que ele não tem", escreveu, usando o filme como trampolim para criticar a censura a um quadrinho com um beijo gay na Bienal do Internacional do Livro do Rio de Janeiro, cortesia do então prefeito Marcelo Crivella.

"Bacurau (para onde eu me mudaria com prazer, se o vilarejo aparecesse no mapa) é uma comunidade [...] mais animada por um projeto hedonista do que por ressentimentos ou reivindicações", cravou Calligaris. "Talvez o mundo esteja mesmo se dividindo segundo oposições novas. Por exemplo, a dos fundamentalismos de todo tipo (de Crivella aos aiatolás) contra a modernidade. Ou, outro exemplo, a do prazer de viver contra uma ganância psicopata."

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