Contardo Calligaris traçou paralelo entre esporte e cultura nos Jogos de Sydney

Enviado especial à Austrália, o psicanalista foi à ópera e escreveu 'A 'Tosca' e os toscos'

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São Paulo

Eclético, Contardo Calligaris integrou a equipe da Folha que cobriu os Jogos Olímpicos de Sydney, em 2000. Falou sobre a experiência também em suas colunas, traçando paralelos entre o mundo esportivo e o artístico.

"Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro. O programa é uma declaração que diria: 'Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta'", escreveu em "A 'Tosca' e os toscos", de setembro de 2000.

Na cidade australiana, Calligaris assistiu à ópera que dá nome à coluna, na casa de espetáculos que é símbolo do país. "Nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões —cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados", escreveu sobre o que viu, fazendo, em seguida, uma provocação.


Leia abaixo a coluna na íntegra.

Os Jogos são a ocasião de um Festival Olímpico das Artes. Há de tudo: cerimônia aborígene, balé, ópera, ciclo de filmes, exposições de arte, teatro.

O programa é uma declaração que diria: "Sydney está orgulhosa de ser a sede da Olimpíada, mas a cidade não é só isso. A paixão pelo esporte é apenas uma faceta. Gostamos de outras coisas também, com toda a complexidade pós-moderna: mesmo respeito para a alta cultura, o folclore, o pop etc.".

Como o edifício da Ópera é (merecidamente) o símbolo da cidade, escolhemos assistir a uma representação da "Tosca" (que foi ótima). No máximo 30% do público era olímpico: delegações ou turistas em Sydney para os Jogos. Os demais eram habitués: pessoas de classe média (regra na Austrália) apreciando a arte lírica ou se convencendo de seu interesse pela ópera. À primeira vista, parecia o tipo de público que se encontra na Sala São Paulo ou no Cultura Artística para um bom concerto.

Ora, antes que o espetáculo começasse e nos dois intervalos entre os atos, as pessoas se reuniam no foyer na frente de duas televisões —cuja presença neste lugar era inesperada. Assistiam a fragmentos das provas de natação daquela noite, torcendo e festejando (ou lamentando) os resultados. Ao tocar da música que assinalava a hora de regressar aos assentos, todos voltavam felizes para o triste destino de Mário Cavaradossi e Tosca.

Pergunta: se houvesse uma Olimpíada em São Paulo, você acha que o público do Cultura Artística pediria TVs no foyer para torcer nos intervalos? Aposto que não. Claro, a maioria provavelmente seria bem feliz com essa possibilidade, mas quase todos achariam inaceitável misturar seu gosto pela alta cultura com um interesse para o esporte. O mesmo aconteceria na Europa e, em menor medida, nos EUA. A razão dessa autocensura não seria estética, mas social e política.

A cultura é um excelente instrumento de separação entre as classes. Para que funcione assim, naturalmente é necessário que o pessoal de baixo seja mantido afastado da alta cultura (o que é simples: basta complicar o acesso à educação e manter inacessíveis os preços dos eventos). Mas para tal fim também é útil manter a ficção de um gosto de elite que desprezaria, por exemplo, a vil paixão pelo esporte.

A "Tosca" é nossa e quem gosta de esporte é tosco —não vamos confundir.

Um público de amadores de ópera que, nos intervalos, gosta e não tem vergonha de torcer na frente da TV é índice de uma maturidade democrática fora de série. A Austrália aparentemente é uma sociedade onde abrir e manter a diferença social não é uma preocupação dominante.

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