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Duelo Doria x Bolsonaro prejudica aqueles que trabalham com cultura

Governo federal suspendeu análise de propostas em busca de fomento de estados com lockdown

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Ana Paula Sousa

Jornalista e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

A portaria sobre a Lei Federal de Incentivo à Cultura publicada nesta sexta-feira foi mais uma a deixar perplexo o setor cultural. Não bastassem as batalhas ideológicas, artistas, produtores e instituições se veem agora no meio de uma disputa política envolvendo o combate à Covid-19.

Num texto confuso, a portaria define que só estados e municípios que não estiverem em lockdown terão projetos da Lei Federal de Incentivo à Cultura, que prevejam a presença do público, aprovados.
A portaria causou perplexidade, primeiro, porque é ilegal. Contradiz instrução normativa assinada em abril do ano passado pelo secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, que estabelecia “procedimentos extraordinários” para os projetos culturais.

A partir dessa instrução normativa, produtores e instituições passaram a readequar seus projetos ao momento de exceção que vivemos. Na maioria dos casos, os eventos presenciais seguem previstos, mas, ao mesmo tempo, são oferecidas alternativas para sua adaptação aos modelos virtual ou híbrido.

A nova portaria suspende, por 15 dias, a aprovação de qualquer projeto que preveja o modelo presencial nos lugares que estão nas fases mais restritivas da circulação de pessoas.

Só que análise e publicação de um projeto no Diário Oficial, que é o que a portaria suprime, não tem nada a ver com sua execução imediata. E mais —há meses, centenas de projetos já aprovados estão parados na Secretaria de Fomento de Incentivo à Cultura, comandada pelo capitão André Porciuncula, à espera de liberação.

Decorre desse fato a impressão de que a portaria é, de fato, uma reação às medidas anunciadas nesta semana por diferentes governos e, em especial, pelo governo de São Paulo. O próprio período espelha o da fase vermelha paulista.

Apesar de a Lei Federal de Incentivo à Cultura ser vital para inúmeros produtores, é sobretudo em São Paulo que ela se concentra. Até 2019, dos dez maiores captadores, seis estavam no estado. São Paulo congrega também o maior número de organizações sociais —entidades que têm convênios com estados e prefeituras— ligadas à cultura.

Agora, estaria sendo feita, também via cultura, uma retaliação às ações que visam conter a crise da Covid-19 e que põem, como antagonistas, o governador João Doria e o presidente Jair Bolsonaro.
Antes de chegarem ao Diário Oficial da União, os embates entre os governos federal e estadual na cultura tiveram capítulos nas redes sociais.

Há cinco dias, Porciuncula, que assina a portaria, postou uma reportagem transmitida pela TV Cultura sobre a perda do prazo de liberação de projetos que usariam a Lei Federal de Incentivo à Cultura no fim do ano passado. Entre eles, há projetos de instituições ligadas ao governo estadual.

No texto, ele diz “vixe, parece que a ‘TV Doria’ ficou bem irritadinha comigo”. “Pois é, eu, este funcionário do terceiro escalão, vou continuar controlando rigorosamente as propostas da ‘Rouanet’.”

Nesta semana, o secretário de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, Sérgio Sá Leitão, teve um bate-boca, pelo Twitter, com o secretário especial da Cultura, Mario Frias. O pano de fundo é a reforma do Museu do Ipiranga.

Como diz, com ironia, um dirigente cultural que pediu para não ser identificado, o berço da pátria foi sequestrado por Doria e quem paga a conta é o governo federal. É que, segundo Frias alardeia, toda a reforma do museu foi bancada por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura, ou seja, sem recursos de São Paulo.

Enquanto isso, aqueles que trabalham com cultura e que, pela natureza de suas atividades, estão impedidos de fazer as coisas da forma que sempre fizeram —juntos, presencialmente e com o público à sua frente— vão sendo asfixiados.

A cada nova portaria, tenha ela validade ou não, tenha ela lógica ou não, um pouco da energia de produtores e instituições que seguem tentando sobreviver à tormenta, se esvai. Como diz o provérbio, na briga entre o mar e o rochedo, quem apanha é o marisco. O marisco, neste caso, é a cultura.

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