Entenda como memes de gatinhos e obras de arte virtuais agora valem milhões

Trabalhos vendidos na rede blockchain, a nova criptoarte, vivem boom com dinheiro do mercado de moedas virtuais

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Os 'CryptoPunks', obra de arte gerada por algoritmo que iniciou a febre dos NFTs Larva Labs LLC/Handout via Reuters

São Paulo

A venda recente de um arquivo JPG por cerca de R$ 387 milhões marcou a primeira vez que uma casa de leilões tradicional comercializou uma obra de arte totalmente digital.

Isolado, o fato já tornaria histórica a colagem “Todos os Dias: Os Primeiros 5.000 Dias”, do americano Beeple, uma reunião de imagens postadas online por ele desde 2007, muitas delas alusões a acontecimentos políticos da última década.

O pregão da Christie's rompeu, porém, uma outra barreira, também inédita —estabeleceu um valor recorde para uma nova categoria de arte que explodiu nos últimos meses. São ilustrações, GIFs, animações, vídeos e músicas associados à tecnologia blockchain e vendidos com um certificado de autenticidade digital, o NFT, ou token não fungível, da sigla em inglês.

Na vida "real", uma obra de arte tem mais valor caso seja única. A lógica não é aplicável, porém, a um trabalho feito no computador —a internet é, afinal, conhecida pela cultura do copiar e colar, e imagens, músicas e vídeos são baixados e replicados em diversas plataformas.

“A obra de arte geralmente é apenas um arquivo digital tradicional armazenado num site. Não é rara ou escassa”, diz Paul Ennis, professor de negócios do University College de Dublin. A escassez está na autenticação do trabalho na rede blockchain, o tal NFT, acrescenta.

A criptoarte é comercializada em plataformas como Open Space, Rarible e Makersplace em ethereum, a segunda moeda virtual mais popular depois do bitcoin —alguns sites também aceitam pagamento em dólar no cartão de crédito.

Para navegar por essas galerias virtuais, é preciso entender de criptomoedas e decifrar uma série de termos em inglês dos mercados financeiro e de tecnologia, não do mundo da arte, já que os produtos à venda não são pinturas, mas sim animações em 3D e arquivos com extensão MP4. Uma dessas plataformas leiloou o conhecido GIF do gatinho "Nyan Cat" no final de fevereiro, por R$ 3,3 milhões.

Nesses sites podem ser comprados, por exemplo, os rostos pixelados da série “Cryptopunks” —que iniciou a febre toda e saem em média por 13,4 ethers, em torno de R$ 127 mil cada um—, e também trabalhos de artistas em ascensão no meio, como os brasileiros Monica Rizzolli, Tony de Marco e Uno de Oliveira, estes com preços bem mais modestos, oscilando entre 0,5 e 2 ethers.

Frame do GIF 'Nyan Cat', de Chris Torres - Reprodução

A taxa para uma obra ganhar o certificado NFT e poder ser vendida gira em torno de R$ 557, diz Oliveira. Uma vez que o item é comprado, o dinheiro cai na conta em minutos e o artista fica com uma porcentagem maior do que se vendesse seu trabalho por uma galeria de arte tradicional, ele afirma. Além disso, o pagamento é em dólares, vantajoso num momento de forte desvalorização do real.

Todas as transações são públicas e não podem ser alteradas —características do blockchain—, e os sites trazem um gráfico onde se vê a valorização ou depreciação cambial de um criador, como a ação de uma empresa.

Oliveira acaba de criar animações em preto e branco para uma série de temas instrumentais compostos por André Abujamra, um dos primeiros músicos brasileiros a abraçar o formato NFT, nas quais o traçado pontilhado de um rosto se mexe conforme a música. Abujamra diz achar bem-vinda a desburocratização desse universo e celebra o que chama de “descentralização" do mercado de arte.

Se o leilão da Christie’s parece selar o casamento dos mercados de arte online e offline, esse matrimônio já havia sido feito pela indústria da música há alguns meses. O mercado NFT é dominado por grandes nomes da eletrônica, que lançam vídeos curtos sonorizados, como no caso da canadense Grimes, ou só cartas virtuais colecionáveis, a exemplo do produtor de house progressivo Deadmau5.

Os fãs de música eletrônica, sobretudo do estilo EDM, são mais envolvidos com arte em blockchain do que os de rock, afirmam Lalai Persson e Bia Pattoli, consultoras de música em criptoarte. “É uma galera muito mais digital”, diz Persson. No mais, o EDM está geralmente atrelado a algum elemento visual, facilitando a sua comercialização em plataformas de NFT, segundo ela.

É possível lançar um disco com certificado NFT e inclusive entregar uma versão em vinil para os ouvintes com uma chave vinculada à rede blockchain, como fez com seu último álbum a banda de indie rock Kings of Leon. Mas essa é uma visão limitada dos potenciais da cripotarte, segundo as consultoras.

Por que, então, os fãs pagariam mais de US$ 60, ou R$ 332, por um disco do Kings of Leon vendido em ethers se podem ouvir as canções quase de graça no streaming? Porque é uma maneira de financiar os artistas diretamente e de ter certeza de que o dinheiro está caindo no bolso deles, responde Gabriel Aleixo, desenvolvedor de negócios da rede em blockchain Hathor.

E há outro fator —esse mercado mexe com a subjetividade humana, já que os altos valores pagos por criptoarte trazem consigo capital social e status, como se os compradores fizessem parte de um clube.

O mercado de NFTs explodiu, segundo Aleixo, devido ao influxo de dinheiro de investidores que lucraram com a valorização de moedas virtuais como o bitcoin e a ethereum, e têm agora verbas disponíveis para gastar. Ou seja, há um público comprador ligado à tecnologia que não necessariamente faria negócios com um galerista.

Se a bonança financeira estimula artistas novatos, por um lado, por outro ela também reproduz a especulação do mercado de arte tradicional, em que endinheirados arrematam, por preços acessíveis, obras de artistas iniciantes e as põem à venda logo em seguida, cobrando valores muito maiores.

Ennis, o professor da universidade de Dublin, diz acreditar que essa bolha especulativa vai passar e que a criptoarte começará a ser usada para criticar os excessos das moedas virtuais das quais se alimenta, além de ser empregada de modos inovadores.

“Artistas tendem a ver o que não podemos enxergar bem e acredito que eles verão potenciais reviravoltas estéticas no NFT que ainda não podemos conceber.”

A criptoarte e o mundo "real"

  • Uma empresa de blockchain comprou uma obra de Banksy, o mais caro artista de street art do mundo, e a queimou durante uma live transmitita há poucos dias pelo Twitter. Mas o trabalho não foi "perdido". A performance serviu, na verdade, para tornar um múltiplo da série "Bansky Morons" num trabalho vendido com NFT, comercializado por mais de quatro vezes o valor original
  • Nem só de arte vive o mercado de NFTs. Um vídeo do astro do basquete Lebron James fazendo uma cesta foi posto na rede blockchain e vendido por mais de R$ 1 milhão; você pode ver de graça no YouTube
  • O meme do "Grumpy Cat", provavelmente o gatinho bravo mais famoso da rede, foi leiloado como um NFT por US$ 78 mil, o equivalente a R$ 433 mil reais
  • São grandes os desafios para entrar nesse universo. Além dos preços em dólar, um leigo precisa aprender a negociar em criptomoeda e a navegar em sites em inglês recheados de termos dos mercados financeiro e de tecnologia, não da arte
  • Isso vale também para os criadores. "O artista que trabalha com esse tipo de produção não tem como se dissociar do conhecimento técnico-científico. Não tem essa coisa 'você é de exatas, você é de humanas'", diz a artista-programadora Monica Rizzolli
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