Entenda como ser cancelado nas redes sociais pode arruinar um contrato de livro

Instrumento conhecido por 'cláusula moral' é usada por editoras grandes e pequenas, mas sua aplicação divide opiniões

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Elizabeth A. Harris
The New York Times

Quando a editora Simon & Schuster decidiu abandonar seu contrato com o senador Josh Hawley para um livro, no dia seguinte à invasão do Congresso americano por arruaceiros, em 6 de janeiro, a notícia causou uma explosão de atenção, elogios e críticas.

Em meio a protestos contra a censura e a chamada cultura do cancelamento, porém, a maneira que a empresa escolheu para revogar o contrato não recebeu tanta atenção. A Simon & Schuster invocou uma parte do contrato que é conhecida como “cláusula moral”, que permite que uma editora não lance um livro caso seu autor faça alguma coisa que possa prejudicar seriamente as vendas.

O uso dessas cláusulas, bastante detestadas por agentes e escritores, se tornou comum nas grandes editoras dos Estados Unidos nos últimos anos. Elas raramente são usadas para romper um relacionamento, mas numa época em que um comentário na internet basta para destruir a reputação de um escritor, a maioria das grandes editoras passou a insistir nelas.

“Elas viraram algo com o qual a pessoa precisa lidar hoje, porque será impossível assinar um contrato em que elas não estejam presentes de alguma forma”, diz Gail Ross, advogada especializada em mídia e presidente da Ross Yoon Agency, cujos clientes incluem o senador Sherrod Brown, democrata do estado de Ohio; o antigo secretário da Justiça de Barack Obama, Eric Holder; e Van Jones, colaborador da rede CNN, entre dezenas de outras figuras da políticas e jornalistas.

Cláusulas morais não exigem que os escritores sejam cidadãos imaculados. Usadas em contratos de muitos setores, elas foram concebidas para proteger os interesses financeiros de uma empresa se alguém com quem elas têm envolvimento direto –seja um executivo ou um astro de futebol americano pago para ostentar o logotipo da empresa– fizer algo que prejudique sua reputação.

Mas porque o objetivo dessas cláusulas é proteger uma companhia contra um comportamento prejudicial sobre o qual ela não sabe, as cláusulas morais são, por natureza, imprecisas.

“São esponjosas”, diz Ross. “O trabalho de um agente ou advogado é garantir que elas sejam definidas da maneira mais objetiva possível.”

A redação das cláusulas varia de editora a editora, e mesmo de agência literária a agência –cada agência chega a um acordo próprio com cada editora. Como princípio geral, elas tomam por alvo condutas que possam atrair condenação pública ou reduzir significativamente as vendas do livro entre sua audiência pretendida que não foram informadas à editora no momento da assinatura do contrato. Assim, se um escritor tem propensão a se envolver em brigas, por exemplo, o livro dele não pode ser cancelado caso um incidente desse tipo aconteça.

Os executivos do setor editorial insistem em que, numa era em que as redes sociais têm o poder de desmantelar reputações do dia para a noite, a capacidade das editoras para comercializar um livro pode se evaporar de maneira igualmente rápida.

Muitos agentes e escritores, por outro lado, veem as cláusulas como perigosamente subjetivas e acreditam que elas permitem que as editoras abandonem um projeto baseadas na sua avaliação da conduta do escritor e nada mais.

“Isso muda radicalmente a premissa que existia entre uma editora e um autor de que o que foi prometido à editora são as palavras do escritor num livro, e não qualquer comportamento específico por trás delas”, diz a agente literária Janis Donnaud. “O fato de que a editora possa assumir os papéis de juiz, júri, carrasco e, na prática, beneficiária dessas cláusulas soa incrivelmente absurdo”.

A editora Regnery, uma empresa de inclinações conservadoras que assinou com Hawley, senador republicano pelo estado de Missouri, depois que a Simon & Schuster decidiu revogar o contrato com ele para um livro, também tem cláusulas morais em vigor, descritas por seu presidente, Thomas Spence, como “a infame cláusula 5F de nosso contrato”. E a Regnery não abre mão dela.

“É a única coisa em nosso contrato sobre a qual não tenho qualquer flexibilidade”, ele disse. “Fui informado de que a cláusula tem de estar presente.” A cláusula moral do novo contrato de Hawley não foi uma questão contenciosa, acrescentou Spence.

Um representante de Hawley não respondeu a pedidos de comentário.

Outras empresas, especialmente nos setores de mídia, entretenimento e esportes, recorrem a cláusulas morais há muito tempo. Stuart Brotman, professor da Universidade de Tennessee em Knoxville, que estuda essas cláusulas, diz que elas existiam nos velhos contratos cinematográficos de Hollywood.

Ele afirma que foi uma dessas que permitiu que a Paramount Pictures cancelasse seu contrato com o comediante Roscoe “Fatty” Arbuckle na era dos filmes mudos, depois que ele foi acusado de agressão sexual contra uma mulher e de a ter matado acidentalmente. Arbuckle foi julgado e absolvido. Na década de 1970, o ator Wayne Rogers teve de deixar a série de TV “Mash” porque não quis assinar uma cláusula moral.

No mundo dos livros, executivos dizem que essas cláusulas eram parte dos contratos de editoras cristãs, antes de se tornarem presença constante nos contratos das grandes casas editoriais. Benny Hinn, um pastor evangélico televisivo, foi dispensado por sua editora, a Strang Communications, por violar sua “cláusula de probidade moral”, em 2010, depois de ser apanhado num relacionamento com outra pastora antes de o seu divórcio ter sido concluído.

Agentes e executivos dizem que escândalos de grande destaque, como a de Paula Deen, chef de cozinha famosa em 2013, levaram as grandes editoras a buscar proteção. Deen admitiu num depoimento judicial que ela havia usado linguagem racista e permitido gracejos racistas, homofóbicos, antissemitas e machistas num de seus restaurantes.

No intervalo de uma semana, empresas como Sears, Kmart, Food Network e Walmart anunciaram que suspenderiam ou cortariam suas ligações com ela. A Ballantine Books, que tinha contrato com Deen para cinco livros de culinária, cancelou o acordo.

As cláusulas começaram a proliferar com rapidez cada vez maior depois que o movimento MeToo revelou acusações de conduta indevida contra muitas figuras públicas, entre as quais Mark Halperin, jornalista e escritor cujo contrato com a Penguin Random House foi revogado em 2017 quando a editora invocou a cláusula de conduta.

Hoje, a Penguin Random House requer cláusulas de conduta em todos os seus contratos –dessa forma, de acordo com a companhia, não existe a implicação de que ela confia em um ou outro escritor. Mesmo algumas das editoras menores, como a Abrams, as exigem, mas essas cláusulas são menos comuns nas editoras independentes, segundo Dan Simon, fundador do Independent Publishers Caucus, que congrega editoras independentes dos Estados Unidos.

Os agentes em geral consideram que as cláusulas morais impostas pela Penguin Random House são menos onerosas do que as de outras editoras, em parte porque a companhia dispõe que os escritores não terão de restituir qualquer dinheiro recebido como adiantamento; a editora só se reserva o direito de não publicar o livro. A Simon & Schuster, por outro lado, tipicamente inclui em sua cláusula moral que ela tem o direito de solicitar a restituição de quaisquer adiantamentos. A Penguin Random House anunciou no ano passado que planeja adquirir a Simon & Schuster.

Embora alguns profissionais do setor temam que a decisão de cancelar o livro de Hawley tenha estabelecido um precedente perigoso, muitos profissionais do mercado editorial –e mesmo agentes e escritores que em geral se opõem a cláusulas morais– afirmam considerar que Simon & Schuster tomou a decisão certa.

Spence, o presidente da nova editora do senador, espera que a atenção gerada pelo caso, e mesmo as críticas dirigidas a Hawley, atraiam mais compradores para o livro dele.

Tradução de Paulo Migliacci

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