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Fotobiografia de João Cabral de Melo Neto desfaz imagem do poeta velho e sofrido

Livro humaniza escritor ao mostrar sua face íntima e ilumina papel da primeira mulher, Stella Maria, em sua trajetória

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foto preto e branco, em tons de sépia, vertical, mostra o poeta sentado numa pedra, de frente para o mar que se estende em ondas até o fundo da imagem, sob um céu com nuvens luminosas

João Cabral em Sitges, 1949, foto tirada por Stella Maria Arquivo da Família/Verso Brasil/Divulgação

São Paulo

Cerebral. Racional. Contido. Obsessivo. João Cabral de Melo Neto, o engenheiro da poesia brasileira cultivou a associação de sua obra com termos como estes. Buscou mesmo o antilirismo e o cálculo preciso do verso.

Por isso é com deleite e surpresa que o vemos surgir entre bailarinos de flamenco e toureiros, jogando futebol na adolescência e olhando embevecido para os cinco filhos.

O espanto surge nas páginas da recém-lançada “Fotobiografia João Cabral de Melo Neto”. E, além de mostrar o homem por trás do poeta, ilumina também a mulher.

Se o trabalho da editora Valéria Lamego e do poeta Eucanaã Ferraz, organizador do livro, permite revelar a face íntima do autor que proclamava sua “ausência de biografia” —como frisa Ferraz na introdução—, muito se deve a Stella Maria Barbosa de Oliveira.

Primeira mulher de João Cabral, ela o acompanhou mundo afora por quatro décadas e em oito dos nove países em que o escritor foi diplomata.

“Minha mãe era arquivista, adorava organizar papelada”, conta Inez Cabral, segunda dos cinco filhos da união.

O casamento durou de 1946 até a morte de Stella, em 1986, quatro anos antes de João se aposentar da diplomacia. Ele se uniria ainda em 1986 à poeta Marly de Oliveira, com quem foi para o Porto, seu
último posto estrangeiro. Ficaram juntos até a morte dele, em 1999, aos 79 anos.

Entre os registros responsáveis por humanizar a figura do escritor, muitos são cliques atribuídos a Stella.
“Ela adorava tecnologias e máquinas. Do meu ponto de vista, ela tinha talento para a coisa, mas nunca levou muito a sério”, conta a filha.

O olhar de Stella se dividia entre o hobby e a consciência da posteridade. “Montava álbuns, separava as cartas e matérias sobre ele, guardava os rascunhos (pois é, meu pai sempre fazia rascunho das cartas) junto com as respostas, acho que era seu passatempo preferido”, diz Inez.

O pai, “carinhoso e brincalhão” na infância dos filhos, “mais contido” na adolescência, assinava boletins da escola após Stella vê-los e dar “a bronca devida”. Ela fazia o resto.

Era nas tarefas auxiliada pela babá, Adela Pinto Coelho, a Tetinha, que aparece no livro em Sevilha ao lado de Isabel, a quarta filha, e dela e de Inez, em Genebra, diante de uma escultura de Mary Vieira, objeto de um dos poemas de “Museu de Tudo”, de 1975.

É bastante presente no livro, aliás, a relação de João Cabral com artistas, que se inicia com Vicente do Rego Monteiro, na juventude no Recife, e tem um período notável em Barcelona, onde conviveu com Joan Miró e Joan Brossa.

Mas a lista de gostos também se estende à tauromaquia e ao flamenco, pilares da cultura da Espanha, país do coração do poeta diplomata.

Stella não compartilhava do “senso estético” do marido, conta Inez. Gostava de ler romances policiais e filósofos católicos, de música francesa e MPB e não apreciava as touradas, mas não reclamava. Ia a shows de flamenco se fosse com casais amigos. “Se não, ele ia sozinho. Tenho para mim que ele preferia.”

O pai ia na frente para o seguinte cargo diplomático; “mandona e decidida”, a mãe “se encarregava de encaixotar, de providenciar toda a mudança”, conta Inez. “Acho que ele era tipo o filho dela.”

“Ela datilografava os poemas dele, depois ele corrigia, ela datilografava de novo ad infinitum. Ela também guardava e arquivava toda a papelada dele. Comprava as suas roupas, ele detestava fazer compras. Só frequentava farmácias e livrarias”, conta Inez.

“Stella foi de alguma forma também o nosso guia”, resume a editora Valéria Lamego.

Sem as notas de Stella, não seria possível saber que a mão que em maio de 1979 aperta a do poeta —representante do Brasil no Senegal, cargo extensivo a mais três países africanos— era a de Frederick Akuffo, chefe de Estado de Gana, executado um mês depois.

Ou conhecer os detalhes das esplêndidas fotos feitas ao longo do Capibaribe por Delson Lima para uma edição ilustrada de “O Rio”, nunca publicada, deixando as imagens inéditas desde 1954 até agora.

Naquele ano, em que “O Rio” foi premiado pela comissão do 4º Centenário de São Paulo, estava no Brasil, afastado desde o ano anterior pelo Itamaraty sem vencimentos, acusado injustamente de colaborar com o inimigo comunista.

Esse amargor não é muito detalhado no livro, ao contrário de outros sentimentos do poeta antissentimental. Esses surgem amparados pelo fino garimpo de trechos de entrevistas feito por Eucanaã Ferraz para acompanhar as fotos, que também reproduzem manuscritos e documentos.

Com o livro, sai de cena “o poeta mais velho, mais sofrido”, quase cego dos anos 1990 que a atual geração conheceu na mídia, diz Lamego. “Agora a gente apresenta o homem.”

Fotobiografia João Cabral de Melo Neto

  • Preço R$ 128 (224 págs.)
  • Autoria Eucanaã Ferraz e Valéria Lamego (org.)
  • Editora Verso Brasil

João Cabral em cinco fotos

1920 Nasce no Recife, na casa do avô materno. Vive até os dez anos em engenhos. A família se muda para a capital nos anos 1930

As crianças estão na varanda, ele num velocípede e ela apoiada no irmão; ao fundo há uma cadeirinha nfantil, a foto é preto e branco
João Cabral de Melo Neto com a irmã Leda, em 1926 - Arquivo da Família/Verso Brasil Editora/Divulgação

1946 Já no Itamaraty, ele se casa no Rio de Janeiro com Stella. Em 1947, começa a vida de diplomata

O casal posa para o retrato preto e branco, no qual ela aparece de noiva, com um vestido com cauda que se abre redonda aos seus pés, e ele de terno preto; de cada lado deles, um arranjo de flores no chão
Casamento de João Cabral e Stella Maria, fevereiro de 1946, na casa da mãe de Stella - Arquivo da Família/Verso Brasil/Divulgação

1953 Por suspeita de comunismo, é afastado do serviço e volta para o Brasil. Viaja com a família por Pernambuco

Foto preto e branco mostra a famílai entre dois grandes cactos
João Cabral e Stella Maria, com os filhos Luís, Inez e Rodrigo, em Carpina (PE) - Arquivo da Família/Verso Brasil/Divulgação


1962 No Itamaraty de novo desde 1954, se fixa em Sevilha, sua cidade favorita

Foto preto e branco tirada numa varanda; na mureta há vasos com plantas, as crianças estão sentadas em espreguiçadeiras de madeira e o pai em uma cadeira, entre eles
João Cabral com os filhos Isabel e Rodrigo em Sevilha, 1963 - Arquivo da Família/Verso Brasil/Divulgação

1994 Recebe o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, uma das muitas honrarias de sua longa carreira, cinco anos antes de morrer, no Rio

Na foto vê-se uma longa mesa coberta com um pano vinho-rosado; de um lado, a rainha Sofia, vestida com um blazer dourado, se inclina entre dois homens para dar a mão a João Cabral, de terno, bem velhinho, tinha 74 anos, que está do outro lado da mesa
João Cabral de Melo Neto recebendo o prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana das mãos da própria, em 1994 - Património Nacional de España/Divulgação
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