A relação da escritora nascida em Luanda com o Brasil se iniciou em 2017, quando lançou, com grande sucesso, "Esse Cabelo" durante a Festa Literária Internacional de Paraty, sacudindo cabeças cacheadas e madeixas lisas.
Em 2019, Djaimilia conquistou o primeiro lugar no prêmio Oceanos com o excelente romance "Luanda, Lisboa, Paraíso", narrativa das desditas de um "retornado", o negro Cartola, que deixa Luanda em busca de tratamento para seu filho Aquiles, que carregava um defeito no pé.
A história de pai e filho que, repelidos por uma Lisboa racista, vão se refugiar na periferia, não é diferente de outras sagas dos negros e pobres no mundo dos antigos colonizadores.
Agora nos chega o pequenino "A Visão das Plantas". Não se iludam, porém, com qualquer possibilidade de atravessar as 85 páginas do romance com facilidade.
É preciso atenção, idas e vindas, interrupções, para absorver melhor a experiência que é fruir tal texto; mastigar as frases, cheirar as imagens que do livro saem, partilhar das fantasmagorias que se espalham e nos carregam, atravessar obstáculos que quase nos derrubam.
O romance parte de citação de "Os Pescadores", do escritor português Raul Brandão, em que é apresentado o capitão Celestino, pirata assassino que sufocou uma revolta de pretos atirados ao mar de seu navio, mas terminou a vida em seu jardim entre flores por ele cultivadas. É esse o enredo que Djaimilia retoma.
Ao final de uma vida cheia, Celestino volta à casa de origem. “A casa e o herdeiro estavam velhos. Não sendo gente, era a companhia que ele não tratara de merecer, um jazigo para seu coração.” A crueldade deixara marcas tatuadas no corpo, a barba comprida e voz cavernosa assustavam as pessoas do povoado: umas poucas crianças curiosas, o padre, as moças “que, ainda novas já usavam à cabeça o lenço do ressentimento, da dor e da crendice”.
No século que apenas vislumbrava o 20, em espaço à beira do mar, a imagem do personagem vai sendo esculpida pelo imaginário dos que o cercam. Não precisavam saber do massacre de negros revoltosos sufocados com cal e jogados ao mar em torno de 1833, nem de gargantas que o capitão cortara, para temê-lo.
Recolhido à moradia onde “as sebes escondiam a porta e os olhos fechados eram as janelas” o monstro cultiva o mais belo dos jardins com suas mãos de sangue e “as plantas viam o jardineiro como as plantas vêem”. A narrativa segue com a escrita tornando-se estonteante de tanta beleza, vocábulos múltiplos num canteiro pujante, imagens com sons e visões inebriantes oferecidas ao leitor.
Na velha casa como “um porão de escravos de um navio à deriva”, o velho só terá ao fim da vida companhia da imagem de uma negra velha que surgia e o esperava: “A morte quando quer tem toda a paciência do mundo”.
Por toda a narrativa não há um só arroubo de condor a clamar a Colombo que feche a porta de seus mares, nenhuma cena de realismo desejoso de convencimento. Antes o silêncio dos que viram grandes horrores e lhes falta a voz para narrá-los. A escrita, por habilidades da linguagem, afasta-se de qualquer temporalidade e um tempo mítico ou fantasmagórico se instaura.
O convívio, que parece impossível, da formosura com a crueldade fala das dores da bela África colonizada. De algum modo, fala também em como contemplamos, à moda das plantas, um capitão de gosto assassino e consciência tranquila.
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