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Lula-Bolsonaro é novela que merecia Dias Gomes e Janete Clair juntos

Pilares da teledramaturgia nacional, autores uniriam esforços pela 1ª vez para dar conta do melodrama da política nacional

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Tudo bem que telenovelas abusam de reviravoltas, mas é difícil imaginar um autor que conseguisse atingir o grau rocambolesco da trama “Lula-Moro-Bolsonaro”. Talvez só Dias Gomes e Janete Clair, juntos, pudessem inventar uma história que chegasse aos pés do melodrama da política brasileira.

E, provavelmente, nem a soma da criatividade dos dois, que foram pilares da teledramaturgia nacional, daria conta de capítulos tão mirabolantes como os recentes da vida real, com a anulação da condenação do ex-presidente, o julgamento do ex-juiz Sergio Moro e a possível eleição que oporia Lula a Bolsonaro.

Dias Gomes e Janete Clair, em 1948, em teste para o filme 'Um Amor e Sete Pecados', nunca rodado - Arquivo de família

Seria a estreia do casal como coautores. Casados por mais de 30 anos, Dias Gomes e Janete Clair assinaram novelas que chegaram a atingir 100% da audiência, mas nunca trabalharam juntos. Trocavam ideias, mas cada um escrevia a sua história. Mas “Lula-Moro-Bolsonaro” tem elementos para o estilo de ambos.

Dias Gomes ficou conhecido pela crítica política e social e pelo realismo de suas obras. Sua opção era retratar na ficção o que ele entendia como a realidade brasileira e, com isso, tentar mudar esse quadro a partir da conscientização dos telespectadores.

As histórias giravam em torno de injustiças sociais e do abuso de poder. Entre seus protagonistas mais marcantes está o prefeito corrupto Odorico Paraguaçu, papel de Paulo Gracindo em “O Bem-Amado”, de 1973, que acaba de reestrear na Globoplay. As vilanias se davam com muito charme e apelo populista.

O autor fugia do maniqueísmo, porque, afinal de contas, na vida real não existem bonzinhos e mauzinhos, as pessoas são mais complexas, e isso não é exclusividade da novela “Lula-Moro-Bolsonaro”. Foi com essa convicção que ele deixou para trás algo comum das telenovelas melodramáticas dos anos 1950 e 1960, os mocinhos e as mocinhas, heróis e heroínas perfeitos. E lançou mão dos anti-heróis.

Um dos mais famosos é Roque Santeiro, papel de José Wilker, da novela de mesmo nome exibida em 1985, artesão de santos que foi dado como morto numa luta para defender sua cidade e se transformou em mito, mas, na verdade, havia fugido com o dinheiro da igreja.

Quando retorna anos depois, trava duelo com Sinhozinho Malta, vivido por Lima Duarte, que não o quer de volta porque o local vive da exploração financeira do mito, com o turismo e a venda de santinhos. Nessa batalha, bem e mal, mocinho e vilão, se confundem tanto, que tem hora que não se sabe por quem torcer.

Homem coloca mão sobre rosto com leve sorriso. Foto em preto e branco
O ator Paulo Gracindo interpreta o personagem Odorico Paraguaçu, da novela "O Bem Amado", de Dias Gomes, exibida na TV Globo na década de 1970 - Divulgação

Não percamos tempo aqui tentando traçar qualquer paralelo entre os antagonistas da novela e Lula e Bolsonaro. Fãs de Dias Gomes fariam um panelaço. “Roque Santeiro”, aliás, abordava os falsos mitos e a necessidade que temos de acreditar neles. Mas a realidade tem ido muito além nesse quesito. Asa Branca, a cidade fictícia que era microcosmo do Brasil, não teve uma eleição como a que se anuncia para 2022, com um duelo entre “mitos”. Também não tinha juiz mito, ex-mito ou falso mito, ainda que as instituições todas, a igreja inclusive, estivessem sempre envolvidas nas falcatruas.

Janete Clair teria um elemento essencial a acrescentar numa telenovela para fazer frente à política brasileira –o despudor. Consagrada primeiro como autora de novelas de rádio e, depois, de TV, tinha uma raiz mais melodramática e um compromisso maior com o romantismo do que com o realismo.

Estreou na Globo provando que valia tudo nas novelas. Chamada a dar uma solução à “Anastácia, a Mulher sem Destino”, de 1967, que tinha mais de cem personagens sem rumo, inventou um terremoto que deixou apenas quatro vivos, para então começar um novo enredo. Nada como a ficção para dar um fim bem dado a qualquer um que atrapalhe a história.

O desapego de Clair à verossimilhança a levou a ser chamada de “alienada” pela esquerda, acusação injusta, uma vez que embalava as juras de amor dos pares românticos com uma visão crítica do país. “Irmãos Coragem”, de 1970, o primeiro sucesso da Globo na teledramaturgia mais próxima da realidade brasileira, discutia opressão e liberdade, retratando as injustiças da exploração de garimpos.

Janete Clair não era filiada ao Partido Comunista como o marido, mas seu nome aparecia frequentemente em dossiês da ditadura militar sobre “o perigo da infiltração do comunismo” na TV.

Uma passagem dos bastidores revela, no entanto, o que a separava dos comunistas. Em 1978, o poeta Ferreira Gullar, amigo e parceiro de Dias Gomes na arte e na militância política, o ajudava informalmente na novela “Sinal de Alerta”, sobre poluição ambiental.

A novelista Janete Clair, em foto de 1977 - Folhapress

Os dois não sabiam como resolver o destino de uma personagem, uma honesta operária casada que, para a história seguir o caminho que queriam, teria de ter um caso com um colega da fábrica. Para eles, a traição não seria plausível. Clair opinou que “não é plausível, mas ia ser lindo". "Mandem o realismo à merda.”

E, vejam bem, era apenas uma operária traindo o marido. Ela não virou presidente do Brasil, nem foi presa por corrupção, depois solta, teve a condenação anulada e se pôs de novo como candidata à eleição presidencial. A moça da novela também não tinha um adversário que tomou uma facada na campanha, se elegeu para a presidência do país e chamou para ministro o juiz que a havia posto na cadeia.

Quem está mandando o realismo à merda é a realidade.

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