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Cinema

Na crise da Ancine, Estado apoiador acabou se tornando um algoz

Produtores de cinema relatam 'contabilidade de padaria' na forma como Ancine tem exigido a prestação de contas

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Ana Paula Sousa

Jornalista e doutora em sociologia da cultura pela Unicamp

Em setembro, a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, completará 20 anos. Sua criação foi fruto da articulação entre produtores e realizadores que pediram ao então presidente Fernando Henrique Cardoso que o Estado voltasse a ter uma atuação direta no setor.

Naquele ano, 30 longas-metragens brasileiros haviam chegado às salas de cinema. Em 2019, foram 169 os títulos lançados. Nesse mesmo período, o número de espectadores dos filmes produzidos no país saltou de 6,9 milhões para 24 milhões.

Adriana Esteves em 'Trair e Coçar É Só Começar'; filme baseado na peça de mesmo nome teve contas reprovadas pela Ancine após 15 anos - Selmy Yassuda/Divulgação

Ao mesmo tempo em que crescia a produção e se expandia a atuação da agência, crescia a dificuldade de se lidar com um sem-fim de formulários, regras, notas fiscais, aprovações e restrições.

Nunca foi simples a convivência entre o aparato estatal e a produção de filmes, que envolve, a um só tempo, o planejamento e o manejo do imprevisto. Na tentativa de compatibilizar esses dois mundos —o do cinema e o da gestão pública—, a Ancine publicou, entre 2003 e 2019, nada menos que cinco instruções normativas que criaram ou modificaram obrigações dos produtores que acessam recursos públicos
e que, por isso, devem percorrer o labirinto burocrático comum a todo o aparato estatal. Foi a esse labirinto que chegaram, em 2017, os auditores do Tribunal de Contas da União.

Munidos de alguns princípios gerais da administração pública, os auditores indicaram o risco de colapso da agência e questionaram um método chamado Ancine +Simples.

Esse método tinha começado a vigorar em 2016 e consistia, entre outras coisas, numa análise por amostragem dos projetos. Com isso, só 5% teriam uma análise detalhada de todas as notas fiscais. Nos demais, a análise levaria em conta a coerência dos gastos e, sobretudo, o “objeto”, ou seja, o filme realizado e lançado.

O Ancine +Simples foi pensado, justamente, para se tentar lidar com a pilha de prestações de contas que ia aumentando. A essa altura, os produtores já mostravam preocupação com a falta de retorno sobre a documentação que entregavam.

Mal implantado o método, aconteceu o processo de impeachment de Dilma Rousseff e, na Ancine, uma mudança na diretoria. Quando o TCU fechou o cerco, os criadores do Ancine +Simples não estavam mais lá para o defender e, em 2019, a assinatura de novos contratos chegou a ser suspensa.

De lá para cá, a Ancine passou pelo afastamento de um diretor-presidente —numa trama paralela, que envolve um processo criminal— e sofreu ameaças de extinção da parte de Jair Bolsonaro, que chegou a dizer que gostaria de “degolar” a diretoria.

Ao mesmo tempo, foi costurado um plano de ação junto ao TCU, no qual a Ancine se comprometeu a resolver o passivo de prestações de contas em quatro anos.

As reprovações que começam a vir à tona são, portanto, a concretização de uma ameaça que há alguns anos assombra o setor e também uma resposta ao TCU.

Algumas contas, como as da Diler Produções, agora reprovadas —como “Xuxa” e “Didi”—, vinham sendo apuradas pela agência há anos, dada a falta de documentação apresentada. Casos assim são, porém, exceção. O setor, como um todo, sempre prestou contas —só que nem sempre elas foram analisadas.

O plano de ação apresentado ao TCU prevê que sejam analisadas 20% das notas fiscais que, de acordo com uma teoria matemática, corresponderiam a cerca de 80% do orçamento do projeto.

Vários produtores e realizadores relatam, porém, a prática de uma “contabilidade de padaria”, com diligências que envolvem desde o pedido de extratos bancários que o tempo tornou ilegíveis até recibos de táxi e fotos de objetos locados e usados em cenários.

É assim que, duas décadas após a criação da Ancine, aqueles que recorreram ao Estado em busca de apoio, passam a ver esse mesmo Estado como o algoz que, de diligência em diligência, vai pondo em xeque a própria viabilidade da política por ele criada.

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