Descrição de chapéu
Alexis Soloski

Nos podcasts, como no mundo, nem todos podem mesmo falar à vontade

Maioria dos apresentadores são homens e brancos, e é comum locutoras receberem comentários atacando suas vozes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Alexis Soloski
The New York Times

Ira Glass começou a trabalhar na rede de rádio público nacional dos Estados Unidos no final dos anos 1970. Passou a década seguinte tentando soar como um repórter da emissora. E como ele soa? Imagine um professor universitário titular lendo uma história de ninar —mas uma que inclui muitas informações de mercado.

Glass não conseguiu reproduzir aquela voz. “Eu só realmente queria inventar um jeito diferente de falar”, diz.

E acabou fazendo justamente isso. Em 1995, ele criou Your Radio Playhouse, uma série antológica que fundia jornalismo e memórias. Cinco meses depois, mudou o título da série para This American Life, essa vida americana.

Como radialista, sua voz era urbana, judaica, um pouco angustiada. Acima de tudo, porém, soava como ele próprio. Em 1998, os episódios de This American Life passaram a poder ser ouvidos via streaming. A partir de 2006, estavam disponíveis também para download –parte da primeira onda de podcasts.

Fone de ouvido para Ilustrada Jairo Malta
Ilustração de um fone de ouvido preenchido com uma página de livro - Jairo Malta/Folhapress

Muitos dos colaboradores e produtores do programa ecoavam o tom de Glass –discreto, coloquial, pausado. Estes criaram seus podcasts próprios –“Serial”, “S-Town”, “StartUp”, “Planet Money”, “Reply All”, “Heavyweight”, “Invisibilia”, para lembrar só alguns dos mais conhecidos. E esse estilo de voz cresceu, em especial no jornalismo narrativo.

Ira Glass frequentemente vê comentários com queixas sobre essas vozes de podcasts nas redes sociais. Ele mesmo tem vontade de curtir. “Porque entendo totalmente por que os ouvintes sentem que ‘ai, meu Deus, não aguento mais ouvir isso’”, conta.

Mas essa voz permanece, mesmo assim. É tão reconhecível que até “Portlandia” e “Saturday Night Live” o parodiam. Ele sugere intimidade e uma autenticidade amarrotada. Isso porque, se alguém não fosse autêntico, com certeza cortaria as palavras em excesso, que só tomam espaço, e a maneira de falar com inflexão ascendente, fazendo cada afirmação soar como se fosse uma pergunta. Você não acha?

Na verdade, porém, as performances aparentemente mais naturais desses podcasts são muitas vezes fruto de ensaios e de cálculos incansáveis. Então quis saber como é que elas são construídas. E se eu seria capaz de reproduzir o estilo.

Como expliquei a Ann Hepperman, produtora executiva da Audible, era um exercício completamente hipotético. Tirando uma semana em que tentei convencer um amigo a criar um episódio de How Did This Get Made?, baseado em fracassos da Broadway, nunca quis apresentar um podcast. “Não diga isso!”, disse Hepperman. “Quando esta pandemia acabar, todo o mundo terá um podcast.”

Perguntei a ela, então, se havia algo que eu podia fazer para converter minha voz numa voz própria para podcasts. Hepperman disse que não, bem-humorada, e se ofereceu para me desprogramar. “Não há nada de errado com sua voz”, afirmou. “Não a vamos melhorar. Vou mandar você ler todos estes artigos sobre por que as vozes de mulheres e outras vozes que supostamente não deviam ser ouvidas no rádio foram estigmatizadas.”

As mulheres que apresentam podcasts costumam receber mensagens de ódio por coisas que são vistas como defeitos, como aquela inflexão ascendente mencionada acima, e um modo de falar conhecido como “vocal fry”, em que a qualidade vocal parece ficar desgastada no final da frase —não menos frequente em vozes masculinas, o que talvez indique que esses autores de mensagens raivosas talvez simplesmente odeiem como as mulheres falam.

Conversei com outros produtores, vários apresentadores de podcasts e alguns treinadores de voz profissionais. Todos concordaram que minha meta deveria ser soar como eu mesma —e ao mesmo tempo autoconfiante, acessível, alguém que sabe do que está falando, descontraída e bem hidratada.

Aprendi algumas dicas com esses especialistas. É preciso fazer aquecimento, exercícios de vibração labial ou um exercício de ioga kundalini conhecido como sopro de fogo. Ethan Herschenfeld, cantor lírico e treinador de voz, explicou a técnica. “Você respira ofegante, como um cachorro, mas pelo nariz.”

É preciso ficar de pé, jogando o meu peso na planta dos pés. Se isso não for possível –e geralmente não é, sobretudo porque tenho medo de tirar meu microfone emprestado do lugar–, é preciso se sentar na beirada da cadeira. Imaginar uma pista de pouso aberta que vai da base do meu diafragma até meus lábios. Desacelerar e depois desacelerar mais um pouco. E inspirar profundamente, de modo a conseguir falar minhas frases até o fim sem cair no "vocal fry".

Alguns dos conselhos me pareceram menos urgentes. Viki Merrick, coach de podcasters e coprodutora de The Moth Radio Hour, disse para eu imaginar uma laranja redonda no fundo de minha garganta. Isso me fez pensar em sufocar. Herschenfeld disse que frequentemente orienta seus clientes a experimentar diferentes registros vocais. “Um registro mais alto pode ganhar energia”, disse. “Você acha realmente que há muitas mulheres por aí a quem alguém pede para falarem num tom acima?”, perguntei. Ele riu e mudou de assunto.

Dois terços dos apresentadores de podcasts são homens. Provavelmente 80% são brancos, e essas porcentagens ficam ainda mais evidentes no caso dos podcasts com mais downloads, que geram mais receita publicitária.

Se você ler até o final os comentários sobre as melhores vozes desses programas, é uma voz branca após outra. (As mais valorizadas? Phoebe Judge e Roman Mars.) Isso converte qualquer discussão sobre voz em também uma discussão sobre poder. Com sua abordagem casual, a camisa solta por cima das calças, a voz de podcast é indicativa de privilégio. Nem todo o mundo tem a chance de soltar o gogó.

Os apresentadores que não são homens brancos, especialmente os que querem atrair um público amplo, muitas vezes estudam, conscientemente ou não, como falar melhor ao microfone. Em 2015, o professor Chenjerai Kumanyika, que hoje leciona na Universidade Rutgers, publicou um manifesto. Ele tinha participado de um workshop de Transom, programa para candidatos a produtores de rádio, e, quando chegou a hora de gravar sua fala, imaginou outra voz –branca.

“Sem que ninguém nos diga diretamente, pessoas como eu aprendemos que nosso modo de falar não é profissional”, ele escreveu. “E você começa a imitar aquele padrão ou até a esconder as características que distinguem sua voz.”

Agora, em Uncivil, Kumanyika usa sua própria voz. Uma delas, pelo menos. “Acho que não há uma voz única que seja o eu autêntico”, afirma. Ele não gosta de traçar generalizações sobre a “voz de podcast” porque acha que isso cria uma câmara de ecos que favorece os podcasts criados por vozes brancas para um público branco, ignorando outras vozes, como por exemplo a de Joe Budden ou de N.O.R.E., apresentadores populares que atraem um público sobretudo negro. “São vozes diferentes, mas estão numa hierarquia”, disse Kumanyika.

Sou branca. Sempre vivi em centros urbanos. Gosto de falar em público e nunca fiquei acordada à noite, preocupada com o modo como falo. Mesmo assim, eu não sabia como soaria quando tentasse soar como uma apresentadora de podcast.

Para treinar, peguei textos de dois artigos meus recentes, um sobre assistir a peças de teatro na tela e outro sobre a comédia de TV “Party Down”.

Alguém tinha me dito que muito do que é importante na voz se resume ao texto escrito. “A regra geral é não escreva nada que você não diria a alguém sentado ao seu lado no metrô”, aconselhou Merrick. “Não tente soar esperta demais.” Ela me ajudou a editar meus textos, trocando uma palavra como “significou” por “quis dizer”, fazendo a prosa soar mais informal.

“O segredo está em parte na sua performance”, ela afirmou. “E está em parte em você se conhecer e saber que ‘meu deus, eu jamais diria algo assim em voz alta’.” Ela também me orientou a iniciar cada leitura com palavras que ela descreve como de “vamos lá” –ela sugeriu “ei, Viki!” ou “oi, Viki!”—para ajudar a me lembrar que eu estaria dirigindo essas palavras a alguém, e que alguém as iria ouvir.

Com Merrick ouvindo, e, algumas noites mais tarde, Herschenfeld também, eu me hidratei e respirei. Herschenfeld me mandou cantarolar até ouvir a vibração nas maçãs do meu rosto. Li cada texto algumas vezes, e a maioria das leituras me pareceu boa, embora eu percebesse que estava articulando as palavras com precisão demais, destacando cada consoante quando eu dizia coisas como “West Side Story”. Só derrubei o microfone uma vez.

Perguntei a Merrick, brincando, se eu teria futuro como apresentadora de podcast. “Sem sombra de dúvida”, ela respondeu –provavelmente o que a maioria das pessoas diria a uma repórter do New York Times. Herschenfeld me disse que tenho boa nasalidade (eu nem sabia que existia boa nasalidade).

Depois da segunda sessão, tarde da noite, ouvi os áudios. Minha voz, a voz que Herschenfeld dissera que era “muito natural”, de fato soava mais ou menos como uma voz de podcast. Também soava muito garotinha, exagerada, uma voz que fazia força para soar casual e que dava ênfase exagerada às consoantes. Não muito como a minha própria voz.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.