Palacete reconstruído artificialmente mostra como o poder se atualiza no Brasil

Trabalho de Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi reconfigura casarão do barão do café Nhonhô Magalhães em vídeo

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São Paulo

O vídeo “Nhonhô”, de Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi, indica logo no começo de seus dez minutos o significado dessa palavra que batiza ruas e palacetes pela cidade de São Paulo. É o diminutivo de sinhô, como os escravos se dirigiam aos mais jovens da casa-grande.

Já se passaram mais de 130 anos do fim da escravidão no Brasil, mas o documentário, agora em cartaz no site do Videobrasil, mostra como as estruturas coloniais persistem nos dias de hoje ao reconstituir a história e a estrutura arquitetônica do casarão Nhonhô Magalhães, no bairro de Higienópolis.

“Quando você vai à etimologia da palavra, o colonialismo está introjetado entre nós nas coisas mais sutis da linguagem —sinhá, nhonhô, iaiá—, é toda uma família simbólica”, afirma Beiguelman.

O palacete do barão do café Carlos Leôncio de Magalhães, construído no final da década de 1930, é todo recriado a partir de processos eletrônicos.

Sem pessoas, com a narração feita só pelas legendas, sem vozes, e com o mapeamento parcial da casa —já que o shopping Pátio Higienópolis, que incorporou o espaço a seu complexo, não permitiu a entrada nas áreas que ainda não foram inauguradas—, a obra cria um ambiente fantasmagórico.

O projeto foi feito durante a pandemia, e a pesquisa historiográfica aconteceu só no ambiente digital. Ilê Sartuzi conta que milhares de fotografias foram tiradas para a reconstrução tridimensional do casarão. A trilha sonora, ruidosa e eletrônica, também está ligada à arquitetura do espaço.

“Tirei as medidas do teatrinho e da escada que desce para o subsolo do espaço e, a partir disso, Gabriel Francisco Lemos chegou a tons que foram a base para a construção dessa trilha”, diz.

A colorização foi feita com inteligência artificial, que pigmentou as imagens com referências europeias e americanas —isso porque as duas regiões são as que têm os maiores arquivos de imagens dessa época, na qual o programa se baseia.

“As fotos ficavam com essa cara europeia, dá para ver no vídeo essa luz diáfana que entra pela lateral”, afirma Beiguelman, que lembra que a iluminação reforça a tentativa de imitação dos palacetes europeus aqui no Brasil.

O shopping ao lado aparece como uma grande parede de espelhos, mimetizando a fachada reluzente do prédio.

É um espaço, portanto, que espelha essa mansão superlativa com teatro, 40 cômodos, capela e tudo importado da Europa —um lugar todo estruturado com uma circulação de empregados que se dava por outras entradas que não as principais, é claro.

Durante o curto espaço que o Paço das Artes, que passou a ter sua nova sede na garagem desse casarão, abriu para o público durante a pandemia, o acesso à instituição cultural passou a ser exclusivamente pela entrada do shopping.

Artistas e outros profissionais envolvidos na exposição do Paço das Artes, “Táticas de Desaparecimento”, que reabriu por pouco tempo antes do segundo fechamento dos espaços culturais em São Paulo, questionaram essa mudança do acesso em carta enviada à instituição.

Quando estava aberto ao público, o Paço das Artes informou, em nota, que, desde a reabertura dos centros culturais, o espaço retomou as atividades com as duas entradas principais do shopping como acesso ao espaço cultural.

O fato de uma instituição dessas ocupar a garagem da casa de um barão do café e ter a entrada por um espaço comercial reflete as questões que Beiguelman e Sartuzi trabalham em “Nhonhô”.

“O vídeo não é uma história da casa e da cidade, é um discurso construído a partir da casa. Ela é um enunciado e integra um complexo, que é o do shopping”, diz a artista.

“Nesse sentido, ela é a lente para que a gente entenda essa apropriação da cultura pelo neoliberalismo, pelos novos formatos de cidade genérica.”

Nessa atualização das relações brasileiras, a cultura é como um serviço, segundo os artistas. “E como um serviço, neste caso, ela ainda tem seu acesso pelas portas do fundo da mansão, e isso não se invalida quando ela é deslocada para a entrada do shopping. Ou seja, a porta da frente é o ambiente de consumo”, afirma Giselle Beiguelman.

Nhonhô, de Giselle Beiguelman e Ilê Sartuzi

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