Descrição de chapéu machismo

Pandemia faz o clássico nu artístico virar nudes mais ousados nas redes sociais

Artistas driblam regulamentos das plataformas para se mostrar no único espaço de exposição da quarentena

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Registro da performance A' fronteira do corpo é o próprio corpo e/ou próteses', de Bruna Kury

Registro da performance 'A Fronteira do Corpo É o Próprio Corpo e/ou Próteses', de Bruna Kury Divulgação

São Paulo

Os dias de performances com corpos nus a poucos metros de distância acabaram —pelo menos enquanto estivermos longe de ruas, museus e galerias. São tempos que nos impedem de presenciar, por exemplo, apresentações como a da americana Carolee Schneemann, que criou linhas em uma tela enquanto seu corpo descoberto estava suspenso, preso ao teto por uma corda com uma amarração quase erótica.

'Up to and Including Her Limits', 1976, fotografada por Henrik Gaard
'Up to and Including Her Limits', 1976, fotografada por Henrik Gaard - Estate of Carolee Schneemann, Galerie Lelong & Co., Hales Gallery, and P•P•O•W, New York

Esse boom de performers nos anos 1960, linguagem que permaneceu no século 21, era também uma resposta política de mulheres que não queriam seus corpos só como objetos de artistas homens. O que fazer para levantar essas questões em 2021, em que o contato com a arte está restrita aos ambientes domésticos? Quando o assunto é o nu artístico, redes sociais como o Instagram, que se tornaram ainda mais ubíquas, são a principal resposta.

André Medeiros Martins, que fotografa nudez desde antes da era dos nudes na internet, reencontrou alguns de seus modelos em momentos menos críticos da pandemia e os fotografou, individualmente, ou em ambientes domésticos ou espaços que estão fechados pela Covid-19.

"Os corpos estão muito mais solitários e num momento de reclusão, sinto a diferença de os retratar. Eles não estão mais tão expansivos como antes", conta. Os retratos têm sido publicados em sua conta no Instagram, com o qual já trabalhava.

"Muitos artistas também trouxeram seu trabalho para as redes sociais, e é o espaço que a gente está habitando agora. É um espaço de presença, não de não presença."

Retrato da série de nus que o fotógrafo André Medeiros Martins fez na pandemia
Retrato da série de nus que o fotógrafo André Medeiros Martins fez na pandemia - André Medeiros Martins

Nessa que é também a era dos selfies, a nudez nas redes sociais também se tornou uma possibilidade de autorrepresentação para artistas, que driblam restrições da internet e mostram mais tipos de corpos do que os predominantes no mundo das artes até o momento.

"Vejo muitos questionarem o porquê de mulheres cis terem tão pouco espaço no mercado da arte, e essa é uma reivindicação legítima. Daí pergunto, e as mulheres trans e travestis? E as mulheres, negras e indígenas? E as mulheres com deficiência? Onde estão?", questiona, por email, a artista carioca Bruna Kury, que trabalha com performances e com o conceito de pornoterrorismo.

Talita Trizoli, curadora e professora na área de arte e feminismo no Brasil, argumenta que a falta de artistas negras e trans é sintoma de como o sistema de artes criava barreiras para esses grupos se profissionalizarem no meio —e que também atingiu mulheres cis e brancas. "Era um jogo de invisibilização bastante intenso que só começa a ser rompido na década de 1960 e gradativamente."

"Dessa geração mais recente, a Bruna Kury é uma artista que trabalha com questões pornográficas, mas entendendo muito bem o risco de captura que esse meio possui", afirma Trizoli.

Num cartaz criado e atualizado ao longo da carreira, o coletivo Guerrilla Girls vem fazendo provocações a instituições. No Masp, constataram que 60% dos nus ali eram femininos, e só 6% dos artistas em exposição eram mulheres. "As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?", perguntavam, na obra.

O cenário denunciado pelo coletivo é reflexo direto da exclusão histórica de mulheres das aulas de anatomia das escolas de belas artes no século 19, quando o nu artístico ganha força na arte ocidental. Na época, não pegava nada bem mulheres olharem e retratarem gente pelada.

"Na segunda metade do século 19, o nu artístico se configura na arte ocidental como uma espécie de gênero autônomo, quando não há mais a necessidade de uma justificativa alegórica ou mitológica para a representação do nu", afirma Fernanda Pitta, curadora da Pinacoteca de São Paulo e professora da Fundação Armando Álvares Penteado.

Quando mulheres começam, finalmente, a ter acesso ao ensino artístico mais para a virada do século, conta a curadora, fazer esses nus se tornam um exercício de afirmação de sua capacidade artística.

"A gente tem um paradoxo no Brasil", afirma Ana Paula Cavalcanti Simoni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. "Temos Anita Malfatti e Tarsila do Amaral, duas artistas muito reconhecidas na vanguarda, e ambas fizeram autorretratos, mas nenhuma delas é tão transgressora neles como outras artistas do século 20 no mundo."

Simoni conta que numa passagem do diário de Anita Mafaltti, a artista lembra que expôs o estudo de modelo vivo, um nu masculino de meio corpo, em que o pênis não aparece, que provocou risadas no público. “Do que eles riam? De pensar que aquela mulher teve acesso a um corpo masculino”, diz a professora.

Esse exercício chegou por aqui só nos 1960 e 1970, quando na Europa e nos Estados Unidos já surgiam nomes incontornáveis como Carolee Schneemann, Marina Abramovic e Valie Export.

“Nos anos 1960, com novas mídias, se amplia o escopo de materiais e a performance é uma das principais linguagens que vai colocar o corpo como uma mídia, como um assunto e agente”, diz Isabella Rjeille, curadora do Masp.

No Brasil de hoje, curadoras ressaltam trabalhos como o da carioca Aleta Valente. "Você percebe que há um ruído, começa a haver uma fissura, que é o fato de você não ter mais um atravessador entre essa imagem e a distribuição", diz Valente, sobre seu trabalho no Instagram.

Segundo ela, as redes sociais abrem possibilidades para a autorrepresentação, e é o caso no seu perfil Ex-Miss Febem, com uma produção diária de selfies que durou dois anos. São imagens de pelos, de sangue, ou seja, do corpo de uma mulher adulta, que são consumíveis nesse padrão do olhar masculino, define a artista.

'Ascensão Social', da artista carioca Aleta Valente
'Ascensão Social', da artista carioca Aleta Valente - Divulgação

Esse é um movimento que já aparece na geração de performers da segunda metade do século 20, em que a autorrepresentação da nudez tinha essa função política. "Elas se dão conta que a expressão do desejo e da sexualidade são construções masculinas, que as tomam como musas, como objeto do desejo e do gozo", diz Talita Trizoli, a professora.

"Uma das táticas que várias delas vão usar é colocar em seus trabalhos índices de deboche, de ironia, de abjeção, inclusive, porque tem um esforço de tirar esse corpo feminino do lugar estritamente erótico."

A artista paulistana Renata Felinto define que usa sua própria imagem como “instrumento de reeducação e de reflexão acerca das histórias relacionadas aos corpos de mulheres negras”.

Na performance "Axexê da Negra ou o Descanso das Mulheres que Mereciam Serem Amadas", Felinto se expõe numa ambientação de época e o despe para, depois, vestir uma amarração como vestimenta. “O nu faz o elo e representa caminhos de libertação de imagens às quais colaram nossas pessoas femininas pretas, como a das amas de leite e as das mães pretas”, escreve a artista, por email.

Ela acredita que as redes sociais são uma ferramenta que democratiza a exibição de corpos fora dos padrões magros e brancos. É preciso, no entanto, burlar as políticas de imagens que podem circular nesses ambientes, que tem inúmeras restrições —é o caso do Instagram, que barra com frequência mamilos femininos.

"As plataformas refletem um pouco a sociedade. Sabemos que apresentar um seio ou uma vagina é algo previamente censurado nesses espaços, e não necessariamente acontece o mesmo com partes erotizadas pelo corpo masculino", diz Fernanda Pitta. "Mas acho que isso também tem criado debates e a possibilidade que artistas possam explorar e denunciar até esses preconceitos."

No entanto, ela lembra, como um contraponto negativo da virulência das redes, o caso da obra da artista Juliana Notari, que inaugurou no começo do ano a escultura “Diva”, uma vulva gigante escavada numa colina em Pernambuco que ela comparou a uma ferida. Nas redes sociais, o trabalho foi alvo de críticas conservadoras.

Pitta afirma que essa nova geração defende olhar para outros corpos que nunca tiveram o mesmo direito de serem vistos nas artes visuais. “Há algo de um orgulho de um corpo dissidente, de uma afirmação da diferença, de uma crítica à ideia dos padrões e do corpo ideal.”

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