Descrição de chapéu The New York Times

Quem é o artista que vendeu por US$ 70 milhões obra que só existe no computador

Ilustrações de Beeple combinam figuras como Donald Trump e Mickey Mouse a cenários distópicos de videogame

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Josie Thaddeus-Johns
The New York Times

Mike Winkelmann não costumava se definir como um artista. Mas isso foi antes de ele faturar US$ 3,5 milhões em um final de semana com a venda de suas obras de arte.

Em dezembro, ele leiloou múltiplas edições de três obras de arte digitais, por US$ 969 cada uma, e 21 obras únicas, a maioria das quais vendidas por US$ 100 mil cada uma. Foi a segunda vez em que ele pôs obras de arte à venda.

O artista, que usa o nome artístico Beeple, criou um desenho por dia, nos últimos 13 anos. Começou com papel e caneta, mas agora costuma usar um software, como o programa Cinema 4D, e desenha no computador.

Na última quinta (11), um leilão online de cinco dias para o conjunto dos primeiros 5.000 dias do projeto foi realizado na Christie’s. Ele foi adquirido por US$ 69,3 milhões, tornando Beeple um dos três artistas vivos mais caros do mundo.

Foi a primeira venda de uma coleção exclusivamente digital realizada pela casa. Também foi a primeira vez que a Christie’s aceitou o pagamento na criptomoeda ether.

Beeple está vendendo as obras em forma de NFTs –tokens não fungíveis, na sigla em inglês—, certificados digitais colecionáveis que empregam a tecnologia blockchain para serem autenticados. Um NFT pode assumir qualquer forma, mas, no caso de Beeple, os formatos são em geral arquivos de imagem ou vídeo, às vezes com um objeto físico anexado, verificados por meio uma assinatura digital no sistema blockchain.

Os NFTs são uma resposta inteligente à necessidade de autenticação e de determinação de proveniência que caracteriza o mundo da arte diante da digitalização crescente do planeta e vinculam permanentemente um arquivo digital ao seu criador. Isso torna as obras de arte digitais únicas, e portanto vendáveis.

O mercado especulativo de NFTs disparou nos últimos 12 meses e continua crescendo. De acordo com o “NFT Report 2020”, publicado pela L’Atelier BNP Paribas e Nonfungible.com, o valor do mercado dos NFTs triplicou em 2020, o que põe seu movimento atual acima dos US$ 250 milhões anuais.

Agora, os mesmos investidores que operam no mercado de criptomoedas estão negociando volumes cada vez maiores de NFTs, em mercados como o MakersPlace —parceiro da Christie’s no leilão das obras de Beeple—, SuperRare e Rarible, onde transações recentes ganharam muito destaque. Memes e produtos gráficos colecionáveis são vendidos ao lado de obras de arte como as de Beeple, o que confunde a separação entre as categorias.

Ainda que essa tenha sido a primeira vez que a Christie’s vendeu um trabalho puramente digital, o mundo da arte já está familiarizado com esse tipo de transação. Por exemplo, qualquer pessoa poderia colar uma banana à parede com fita adesiva, mas isso não faria do objeto a polêmica obra de Maurizio Cattelan exibida na Art Basel Miami Beach em 2019.

Da mesma forma, seria fácil produzir uma cópia digital de “Todos os Dias – Os Primeiros 5.000 Dias”, de Beeple, mas mesmo que o conteúdo fosse rigorosamente o mesmo, a pessoa não seria proprietária da obra de arte sem confirmação via blockchain. Os NFTs tornam possível colecionar obras de arte digitais da mesma forma que quadros, esculturas ou obras conceituais o são hoje.

“Não sei nada sobre o mundo tradicional da arte”, disse Beeple, que se formou em ciência da computação e só começou a pesquisar sobre NFTs em meados de outubro.

Ainda que seja novato nos mundos das belas artes e da criptoarte, seu projeto “Todos os Dias”, iniciado 13 anos atrás, ganhou popularidade online. Ele tem um número imenso de seguidores (quase 2 milhões no Instagram, 200 mil no Twitter). Sua estética distorcida e apocalíptica levou a encomendas por marcas como a Louis Vuitton, cuja coleção da primavera de 2019 trazia imagens criadas por Beeple como estampas.

O trabalho de Beeple tem um apelo bruto, ostensivo, e funciona como se uma espécie de cartum político combinado a um videogame distópico. Políticos como Donald Trump, Kim Jong-un e Hillary Clinton são presenças frequentes (muitas vezes nus, se bem que com corpos mutantes, robóticos), mas o mesmo vale para Buzz Lightyear, Mickey Mouse e Pikachu.

Como Winkelmann cria um desenho por dia, seus trabalhos muitas vezes se inspiram no noticiário, metabolizando a cultura da internet em forma de comentário visual. É um estilo que fala o idioma de origem dos especuladores adeptos dos memes, muitos dos quais fizeram fortuna com investimentos em tecnologia e criptomoedas.

Depois de suas primeiras vendas em outubro, Winkelmann decidiu conduzir o leilão que realizou em dezembro por meio do site Nifty Gateway. O evento bateu os recordes de preços vigentes para obras de arte digitais em cinco minutos. Muitos compradores revenderam as peças imediatamente, com lucro, multiplicando seu investimento inicial em questão de minutos. Hoje, muitas das obras envolvidas estão sendo revendidas a preços até 1.000% mais altos que os originais.

“Foi um verdadeiro sinal de alerta, para todos nós”, disse Noah Davis, especialista em arte do pós-Guerra e contemporânea na Christie’s, “quando vimos valores assim sendo pagos”.

“Estamos diante de uma possível mudança de paradigma”, prosseguiu Davis, apontando para o boom recente das criptomoedas e para a revolta dos investidores na GameStop contra Wall Street este ano, como provas de que os mercados financeiros estão mudando rapidamente.

Beeple trabalha com dois telões de TV montados nas paredes de seu estúdio e sempre ligados, um sintonizado na Fox e o outro na CNN, ambos sem som. O estúdio também conta com um sofá de couro preto e um espesso carpete bege.

Contatado via Zoom para uma entrevista, ele foi entusiástico e irreverente. Com os cabelos penteados cuidadosamente e usando um suéter cinzento cujo zíper estava meio fechado e permitia ver uma camisa social por baixo, ele parecia mais um técnico de informática do que um profeta radical da nova arte, mas parecia falar com franqueza.

O artista americano Mike Winkelmann, o Beeple - AFP

Beeple por muito tempo se sentiu excluído do mundo da arte. Ele diz estar se divertindo muito com a reversão de sua situação propiciada pelos investidores em criptoarte e criptomoedas. Suas obras, a maioria das quais ele define sumariamente como “uma merda”, subitamente estão à venda numa das casas de leilões mais prestigiadas do mercado de arte.

“O mundo da arte tradicional parece estar perguntando ‘quem é esse moleque’, mas tenho 1,8 milhão de seguidores no Instagram”, ele diz. “E a venda na Christie’s parece oferecer alguma validação a tudo isso”.

O mundo das belas artes “enfim começa a reconhecer os artistas digitais como arte verdadeira”, acrescenta.

Para todo um elenco de ilustradores digitais e artistas gráficos que sempre enfrentaram dificuldades para ganhar a vida com seu trabalho, o jogo parece ter mudado. Os NFTs representam um atalho que permite a eles escapar aos controladores do mercado tradicional da arte.

“Pode-se argumentar que essa é uma postura ‘punk’”, diz Ruth Catlow, pesquisadora e curadora do laboratório de arte descentralizada Furtherfield, em Londres, e editora do livro “Artists Rethinking the Blockchain”. “Isso permite que a classe artística, sempre sofredora e sempre batalhando para ganhar a vida, mas desvalorizada pelas máquinas do mercado de arte mais sofisticado e por suas plataformas de marketing, restaure sua dignidade.”

As grandes somas que estão sendo ganhas com NFTs, no entanto, contam uma história diferente. Tipicamente, o mundo da arte desdenha da ideia de comprar para revender imediatamente e realizar lucros. Mas diferentemente do que acontece com os artistas tradicionais, no caso dos NFTs o blockchain que autentica o trabalho também pode criar um conjunto de regras para uso futuro da obra.

Por exemplo, o contrato de Beeple garantirá que ele, como artista, ganhe dinheiro se outros especularem com suas obras –no caso dele, 10% do valor de cada venda no mercado secundário (o padrão no segmento de NFTs). Nesse sentido, os NFTs oferecem um modelo para que artistas capturem o valor de seu trabalho à medida que este cresça. “Quando você compra a obra, está entrando num relacionamento comigo”, resume Beeple.

Catlow afirma que “isso permite que os artistas programem um conjunto de contratos com os colecionadores que apreciam suas obras”.

O acesso irrestrito ao mercado (qualquer pessoa pode criar um NFT, em teoria) e a mentalidade outsider dos artistas oferecem um paralelo evidente —a arte de rua. “Penso neles como semelhantes, com relação à forma pela qual estão desordenando as categorias tradicionais das coleções de arte contemporânea”, diz Davis, da Christie’s.

Beeple, no entanto, prefere ficar de olho nos números, apontando que a Christie’s leiloou 21 obras de Banksy em setembro, o mesmo número de trabalhos que ele pôs à venda por US$ 3,5 milhões. “E eles só” –ele fez uma pausa para sinalizar com os dedos como se estivesse pondo aspas em torno dessa última palavra– “arrecadaram US$ 2,9 milhões”, afirmou o artista, antes de cair na gargalhada.

Tradução de Paulo Migliacci

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