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Cinema

'Querência' mostra sertão que não é de Glauber nem de Guimarães Rosa

Filme de Helvécio Marins Jr. atesta a distância entre modos de viver e de sentir da roça e da cidade

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Querência

  • Onde Disponível na Netflix
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Marcelo Di Souza, Kaic Lima, Carlos Dalmir
  • Produção Brasil, 2019
  • Direção Helvécio Marins Jr.

Numa bonita cena de “Querência”, que chega agora à Netflix, um grupo de jovens do campo olha para a cidade que se espalha a poucos quilômetros dali. É o primeiro momento do filme em que saímos do mundo do gado, em que suspendemos a convivência com a paisagem bucólica (excessivamente até), de cores ultrarrealistas, das fazendas de Unaí.

Nessa paisagem, a vida decorre lentamente, quase sem sobresssaltos, exceto aqueles provocados pelos rodeios ou por um eventual roubo de gado. Dela, o diretor mineiro Helvécio Marins Jr. busca extrair antes de tudo o tempo lento, preguiçoso, pelo qual as vidas escoam, pobres em quase todos os sentidos.

Lá estão o vaqueiro Marcelo di Souza e seu amigo Kaic, por exemplo, comendo queijo, morando modestamente, mas vivendo seu momento de glória como apresentador dos rodeios da cidade.

Pobres em quase todos os sentidos, mas não em todos. Pois de repente, eis que Marcelo mostra em seu rosto a humilhação e a dor do roubo de gado de que foi vítima. É apenas um olhar que se insinua, mas ele carrega todo o seu infortúnio.

Enquanto isso, seu amigo Kaic prepara textos para serem ditos no próximo rodeio, ou faz versos ruins lembrando a situação dos pobres ao governo. Trata-se, porém, de um gesto sem transcendência. Uma reclamação política, mais nada. Mas é em momentos como esses que a vida como que se infiltra, quase contra a vontade dos viventes, e os apanha.

Há um outro momento como esse, e ele dá conta da proximidade entre o sertão e a cidade. Os rapazes estão reunidos. Um deles lembra que quando os playboys da cidade saem para tomar umas e outras, é o “happy hour”, enquanto quando eles fazem o mesmo é só encher a cara ou algo do tipo. Riem com a constatação. A linguagem atesta a distância entre modos de vida contíguos e tão diferentes.

Nesses momentos, é como se o filme nos dissesse que a vida não é apenas isso que nós, gente da cidade, concebemos como vida. A sensibilidade é a mesma, mas as formas são outras. E, enquanto um vaqueiro ensaia os gestos de montar um boi, do lado de fora uma moça fala ao celular sobre a vida no novo bairro e o TCC que precisa apresentar na faculdade.

É bem esse o desafio de Marins Jr., buscar uma espécie de unidade na diversidade. Mostrar um sertão que não é nem de Glauber, nem de Guimarães Rosa, nem de Lampião ou padre Cícero. É um lugar sem lugar, onde nada fica muito claro. Por que, por exemplo, Marcelo mora na casa de sua infância, mas o seu trabalho deve terminar e ele deve buscar outro paradeiro?

Os sentidos não se fecham nesse sertão onde a vida do gado e a vida dos homens parece se confundir pateticamente na maneira como concebem o mundo. Não por acaso, o filme termina com a cidade abraçando um desfile de carros de bois com o seu ruídos típicos, tão distantes do urbano. No auge, desfile e filme terminam com a imagem da cara de um boi.

Pode ser uma pergunta –o que há de comum entre esses bois e esses homens tão conformados? Ou pode apenas ser a imagem que nos lembre que o sentido não se fecha: não há fim possível.

Dito isso, em filmes como esse, em que a paisagem sobressai, a tela grande faz falta.

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