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Roteiro de Antonioni nunca filmado sairá do papel pelas mãos de diretor brasileiro

André Ristum vai gravar 'Tecnicamente Doce', que se passa na Sardenha e na floresta amazônica

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O cineasta italiano Michelangelo Antonioni é flagrado no set de filmagem em cena do documentário 'Antonioni sobre Antonioni', de Carlo di Carlo Divulgação

São Paulo

Um jornalista italiano entra numa crise existencial que o sopra para o além-mar, até terras brasileiras, onde ele embarca numa expedição pela Amazônia. Ele se envolve com uma jovem enigmática e tem como companhia um estudante de antropologia —pronto, o triângulo amoroso está formado. A premissa faz parte do repertório do mestre italiano Michelangelo Antonioni, mas não entrou para a sua filmografia.

Mesmo considerado pelo cineasta, quando em vida, um de seus mais queridos roteiros, ele nunca saiu do papel. A umidade da floresta que atacava os equipamentos e outras dificuldades de gravar dentro da mata o forçaram a abandonar o projeto, que agora, meio século depois, vai poder finalmente chegar às telas —e pelas mãos de um brasileiro, o cineasta André Ristum.

“Tecnicamente Doce” deve começar a ser gravado em 2023, na região amazônica e também em Roma e na ilha de Sardenha. Os direitos do roteiro foram comprados há pouco pelos irmãos Caio e Fabiano Gullane, da Gullane Entretenimento, que dividem a produção com André Novis e a italiana Similar Film. Uma viagem de pesquisa e buscas por um elenco estão previstas já para o segundo semestre.

Michelangelo Antonioni nos bastidores do filme "O Grito", em foto de 1956
Michelangelo Antonioni nos bastidores do filme "O Grito", em foto de 1956 - Leemage/AFP

A ideia de ir atrás do roteiro surgiu na hora certa, conta André Ristum em conversa por telefone, já que Enrica Antonioni, viúva do mestre italiano morto em 2007, estava sendo sondada por produtores de vários países, também interessados em finalmente dar forma à história.

“Foi um sofrimento para ele [Antonioni] ter de abandonar a produção”, afirma a viúva por meio de nota. “Conheci Michelangelo quando ele estava preparando o filme e o acompanhei em suas viagens à Sardenha e em busca de selvas ao redor do mundo, até chegarmos à Amazônia.”

Idealizado no apogeu criativo do italiano, “Tecnicamente Doce” deveria ter sido lançado entre “Zabriskie Point”, de 1970, e “Profissão: Repórter”, de 1975. Antonioni chegou a estudar locações em solo brasileiro e a escalar Jack Nicholson e Maria Schneider para os papéis principais, mas o produtor Carlo Ponti cortou seu financiamento.

Enrica Antonioni agora vai assinar como produtora associada do filme e decidiu confiar a direção ao brasileiro por causa de um longo laço entre as famílias Antonioni e Ristum.

Pai de André, Jirges Ristum foi assistente e amigo próximo do cineasta italiano entre os anos 1970 e 1980. Ele deixou o Brasil no começo da ditadura militar e se exilou no Reino Unido —onde o filho nasceu— e, depois, na Itália.

Às vésperas do encontro de André com Enrica em sua casa na Umbria, ela encontrou uma série de fotos antigas do marido e, entre elas, estava um rosto conhecido, o de Jirges, dividindo uma grande poltrona com o cineasta num momento de descontração.

“Eu me lembro muito pouco do Antonioni, porque me relacionei com ele até os nove, dez anos. Lembro mais das histórias do que da figura. Mas eu ia visitar os sets de filmagem e tenho lembranças dele em casa, em jantares. Quando a Enrica resgatou essas fotos da época, houve uma reconexão afetiva imediata”, diz André.

Depois de auxiliar Antonioni, Jirges fez as malas para finalmente retornar ao Brasil. Ele trouxe consigo o roteiro de “Tecnicamente Doce” —um presente, mas também uma missão. O cineasta italiano confiou ao amigo e assistente a tarefa de gravar a história em solo brasileiro. Seria seu primeiro trabalho na direção, mas ele não teve tempo —morreu de câncer em 1984, ano no qual André viu Antonioni pela última vez, numa missa dedicada ao pai.

As carreiras de pai e filho se cruzam agora para finalmente viabilizar o projeto. Mas esta não é a primeira vez que a trajetória de André dá continuidade à de Jirges. Quando estudava na Itália, o primeiro foi assistente de outro mestre italiano, Bernardo Bertolucci, com quem o segundo também colaborou no passado.

Mas ao chegar a hora de realizar seus próprios longas, André já estava de volta ao Brasil. Por aqui, lançou “Meu País”, “O Outro Lado do Paraíso” e “A Voz do Silêncio”, premiados em Brasília e em Gramado. Só agora ele vai retornar às raízes de sua jornada enquanto cineasta, a Itália.

O cineasta Michelangelo Antonioni e Jirges Ristum, brasileiro que foi seu assistente de direção, em foto de arquivo
O cineasta Michelangelo Antonioni e Jirges Ristum, brasileiro que foi seu assistente de direção, em foto de arquivo - Enrica Antonioni/Arquivo

“Inicialmente fazer ‘Tecnicamente Doce’ parecia um sonho maluco, mas aí as coisas foram acontecendo”, diz ele, sobre abraçar uma trama de autoria de Antonioni. “Esse era um roteiro que sempre habitou meu imaginário e agora me permite ter uma reconexão com o meu pai.”

É um projeto ambicioso, sem dúvida. Descrito como uma “poética e catastrófica aventura ítalo-brasileira”, o drama vai precisar passar por uma modernização, embora André avalie que a atualidade da história é assombrosa.

“Tecnicamente Doce” se ancora na relação do homem com a natureza e fala muito sobre a polarização na qual o Brasil, e também boa parte do mundo, mergulhou nos últimos anos. Ao abrir espaço para a fantasia, a Amazônia da trama permite que os personagens se vejam em situações que evocam temas como a banalização da violência e a preservação do meio ambiente, por exemplo.

É uma história permeada por uma certa desilusão com o ser humano, descreve o diretor, o que vai ao encontro de sua própria percepção sobre os rumos da nossa sociedade. “Acho que vai ser muito interessante assistir a esse filme e perceber como a cabeça do Antonioni estava à frente de seu tempo, por causa das questões das quais o roteiro trata, e ver também que muitas coisas não mudaram."

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