Tom Zé foi de motorista da Brasília velha ao último gênio tropicalista, diz livro

Mesmo lançando discos hoje celebrados, artista, que ganha 1ª biografia, passou por esquecimento até conhecer David Byrne

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Antônio José Santana Martins, conhecido como Tom Zé, compositor, cantor e arranjador brasileiro, em 1972 Folhapress

São Paulo

Tom Zé é um ser humano vivendo num mundo pós-humano. “A gente já é a internet. Os meios que a gente lida não são humanos. Humano é o correio, a TV”, ele diz. “Nasci em 1936, vivi a vida toda no século 20. A gente não podia imaginar um telefone.”

Nesse mundo pós-humano, globalizado e pandêmico, o cantor de 84 anos —que acabou de tomar a vacina— pode dar entrevistas e falar com pessoas por uma tela. Também pode se comunicar com seu biógrafo, o crítico italiano Pietro Scaramuzzo, no celular.

“O livro foi escrito todo pelo WhatsApp. Ele combinava de ligar para tratar de tal assunto. Eu estudava o assunto e quando ele ligava já estava pronto. Eram duas horas por semana. Devia sair um agradecimento ao WhatsApp no livro.”

“Tom Zé, o Último Tropicalista”, a primeira biografia oficial do baiano, saiu na Itália no ano passado, e agora ganha edição brasileira pelo Sesc.

Antes disso, o único livro sobre Tom Zé é “Tropicalista Lenta Luta”, da Publifolha, com um relato autobiográfico.

É mais um passo da reviravolta que a carreira de Tom Zé vive desde os anos 1980. Da pequena Irará, na Bahia, o tropicalista mais tímido chegou a São Paulo nos anos 1960 para entrar no movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil. Fez sucesso cantando a cidade em “São, São Paulo”, mas, mesmo tendo lançado nos anos 1970 discos hoje reconhecidos, eles não vendiam.

São dessa época os álbuns “Todos os Olhos”, “Estudando o Samba”, “Correio da Estação do Brás”. Eles renderam um disco recente chamado “Raridades”, com gravações que nem Tom Zé sabia que existiam. O destaque é a performance de “Jeitinho Dela” com os Novos Baianos, em 1969, no Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record.

Com o exílio de Gil e Caetano, na virada dos anos 1960 para os 1970, Tom Zé aparecia cada vez menos. “Eu era alimentado basicamente pela classe estudantil de São Paulo”, lembra o cantor, que rodava pelo interior de carro. Ele chegou a ficar de 1969 a 1993 sem fazer nem sequer um show no Rio de Janeiro. “Eu era o motorista da Brasília velha.”

O livro narra os dias em que abria os jornais religiosamente buscando alguma menção a ele sempre que lançava um disco. Quase sempre era em vão. “É claro que dava desgosto. Eu e a [mulher dele] Neusa ficávamos aqui muito tristes.”

Tom Zé chegou a compor jingles publicitários para Washington Olivetto. Era um paradoxo. Ele era capaz de fazer músicas para vender guaraná, mas não os próprios discos.

“Trabalho muito para fazer uma música. Não sou o cara toma um uísque e faz uma canção que o povo vai cantar o ano todo. Trabalho para o cognitivo, não o contemplativo. Quando deixei de fazer música popular para fazer essa coisa da ‘imprensa cantada’, queria atingir outra emoção. Não sabia fazer uma música como se fosse um jingle. Mas fazer jingle eu sabia.”

Quem tirou Tom Zé do esquecimento foi o americano David Byrne, que conheceu por meio do jornalista Matinas Suzuki. Na época trabalhando neste jornal, ele entrevistou o vocalista do Talking Heads em Nova York e percebeu uma anotação na mesa dele, “quando estiver no Brasil, procurar Tom Zé”. Byrne veio ao país em 1988 gravar o documentário “Ilé Aye” na Bahia.

A partir dali, Byrne passou a lançar no exterior discos novos e antigos de Tom Zé, e ele passou a ser mais lembrado pelo New York Times do que pela imprensa brasileira. Fez turnês na América do Norte e na Europa tocou com a banda americana de post-rock Tortoise e voltou a lançar discos.

Entrou numa lista de melhores dos anos 1990 da revista Rolling Stone e há pouco até o site Pitchfork —a Bíblia dos indies— listou uma faixa de Tom Zé, “Nave Maria”, entre as melhores dos anos 1980.

Dividido pelas épocas de cada disco, a biografia também traz histórias divertidas da infância do músico. Lembra de quando ele travou de timidez ao cantar com o violão para a primeira namorada e quando quase fez um avião —o que vinha para São Paulo com ele e Caetano— parar depois de pedir um gole de cachaça e ser rejeitado pela aeromoça.

Scaramuzzo, o biógrafo, fala ainda do “acordo tácito” que passou a nortear toda a produção de Tom Zé até hoje. Em vez de canções atemporais e subjetivas, ele faria o que chama de imprensa cantada. “Botava na música logo uma pessoa, um lugar, um fato que conhecia. É a estratégia primeira, não? Aí começava a descrever aquelas coisas cantando.”

Além de tropicalista na essência, Tom Zé é retratado como um artesão meticuloso da canção. Scaramuzzo fala de sua obsessão por frequências altas e como ele criou instrumentos a partir de parafernálias em experimentos que acabariam no disco “Nave Maria”.

Também lembra como os nove anos em que ele estudou música na Universidade Federal da Bahia deram uma base teórica que serviu para que ele desenvolvesse conceitos da música de vanguarda na música caipira. Ele teve aulas com um professor, Hans-Joachim Koellreutter, que vinha da Europa com ideias radicais.

Mas, acima de tudo, Tom Zé surge como um compositor detalhista e criativo, que desconstrói canções e frases, reduzindo tudo à essência, para daí reconstruir a seu modo. É o que fez em “Estudando o Samba”, o disco que, segundo o próprio David Byrne, mudou sua vida —e, por consequência, a do cantor baiano.

Hoje, Tom Zé rebola para tentar se manter humano no século da pós-verdade. E não perde a esperança na música brasileira. “Sou apaixonado pela música periférica brasileira. Acho que ela é digna do tropicalismo. Mas não é em rádio que você vai encontrar. Tem que procurar. O Brasil faz e sempre fez uma música maravilhosa. Quem pesquisar vai encontrar.”

Tom Zé, O Último Tropicalista

  • Preço R$ 90 (336 páginas)
  • Autor Pietro Scaramuzzo
  • Editora Edições Sesc São Paulo.
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