Vladimir Safatle usa versos sobre o Holocausto e áudio de WhatsApp em novo disco

'É como se música de concerto não existisse para a sociedade brasileira', diz o pianista e professor da USP

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São Paulo

Vladimir Safatle leva o ouvinte para universos sonoros distintos uns dos outros em seu novo disco. “Tempo Tátil”, álbum do pianista e professor de filosofia da USP que sai agora, traz versos de um poema sobre os mortos no Holocausto, pianos que começam e param inadvertidamente, falas de um pregador de rua dos Estados Unidos, crescendos de violino que serviriam como trilha para um suspense e até uma mensagem de áudio de WhatsApp da filha de Safatle.

Em parte instrumentais e em parte cantadas, as 13 faixas do disco são repletas de referências extra-musicais e têm estruturas que fogem ao formato tradicional da canção, de versos e refrões —o álbum se insere na tradição de música de vanguarda dos compositores americanos Morton Feldman, John Cage e Steve Reich. Questionar o formato da canção era mesmo a intenção do pianista.

“A música brasileira se estruturou em larga medida em torno da forma canção. É a música que se discute na universidade, que se ouve, a forma musical da nossa experiência nacional ”, afirma Safatle, reconhecendo a importância de compositores como Chico Buarque e Caetano Veloso.

“Mas tem uma configuração singular dentro desse tipo de acesso. É como se a música de concerto não existisse para a sociedade brasileira, pura e simplesmente.”

Vladimir Safatle, filósofo e pianista, em foto de divulgação do disco "Tempo Tátil"
Vladimir Safatle, filósofo e pianista, em foto de divulgação do disco "Tempo Tátil" - Alexandre Nunis

Para o pianista, embora o país tenha uma tradição de música contemporânea vinculada a espaços de concerto —a exemplo da pioneira da música eletrônica Jocy de Oliveira—, este tipo de experiência não criou uma presença forte no imaginário cultural brasileiro.

“É uma questão interessante a se colocar num país que se diz muito musical, como o Brasil. É como se a crônica fosse a única forma de um sistema literário", compara.

Composto ao longo de dez anos, entre 2008 e 2018, “Tempo Tátil” leva a um patamar mais radical as experimentações que começaram em seu primeiro disco, “Músicas de Superfície”, em que Safatle acompanhava ao piano a voz versátil de Fabiana Lian.

A cantora, segundo o site da gravadora, interpretava as letras “pela fonética e não pelo sentido das palavras”. Definições à parte, "Músicas de Superfície", lançado há dois anos, é um álbum mais acessível se comparado ao atual.

Uma das faixas mais bonitas do novo disco é “O Amor Vai Desterrar Nossos Corpos”, em que a soprano Caroline de Comi canta, em alemão e com um tom de voz profundamente melancólico, o poema “Es war Erde in Ihnen”, ou havia terra neles, um dos mais conhecidos de Paul Célan, judeu romeno sobrevivente dos campos de concentração que fez de sua poesia uma forma de elaborar o Holocausto.

O piano de Safatle trava um jogo de idas e vindas com o violino de Renan Vitoriano nesta faixa, e em certos momentos ambos os instrumentos se aquietam para deixar a voz doce de De Comi em primeiro plano.

O desenho melódico da voz, remetendo a músicas de cabaré, traz um tom quase otimista a um poema de temática muita dura, “antimusical”, segundo Safatle. Depois de muito escavar, o personagem do poema encontra um anel, como se fosse um fio de esperança.

“Meus amigos alemães falavam que esse poema era sobre os campos de concentração, a ideia da terra sobre os corpos, e eu quis mostrar que não, que havia [no poema] uma dimensão de uma nova promessa de amor que ressoava a ideia de o que significa procurar esse tipo de experiência afetiva depois de um trauma [o Holocausto] que paralisa a língua, que paralisa a capacidade de representação, paralisa tudo.”

Tempo Tátil

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