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'A Idiota' é romance de formação que se passa no início das paqueras virtuais

Livro de Elif Batuman se inspira em Púchkin e clássicos russos ao narrar vida de universitária no surgimento da internet

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Pintura de Marcelo Tolentino

Pintura 'Janela', de Marcelo Tolentino Reprodução

São Paulo

Quando Selin, uma adolescente americana filha de turcos, chega a Harvard como estudante do primeiro ano, ela recebe seu primeiro endereço de email. Depois de um tempo, está fascinada pelo novo meio de comunicação.

Estamos em 1995, ainda distantes da internet sem fio, e uma conversa por emails com um garoto húngaro de sua turma de língua russa servirá como uma espécie de mundo paralelo para Selin, a protagonista de "A Idiota", primeiro romance de Elif Batuman.

Espécie de romance de formação, a trama segue Selin por um ano, do começo das aulas às férias de verão, quando ela viaja com a amiga Svetlana, aluna sérvia de Harvard, e vai à Hungria para dar aulas de inglês e tentar alguma atenção de Ivan, o garoto dos emails.

mulher branca de cabelos longos e pretos usando camiseta preta sentada e gesticulando os braços
A escritora Elif Batuman em mesa da Flip de 2014 - Raquel Cunha-31.jul.2014/Folhapress

O livro finalista do Pulitzer de ficção em 2018 é inspirado em diários que a autora manteve no primeiro ano de faculdade. Também americana filha de turcos, Batuman, de 43 anos, é colaboradora da revista New Yorker, especialista em literatura russa e escreveu "Os Possessos: Aventuras com os Livros Russos e Seus Leitores", publicado no Brasil pela LeYa.

Por vídeo, Batuman conta que voltou ao diário no começo dos anos 2000, para transformar os escritos num romance, mas abandonou o rascunho. Passou então a estudar os russos e a fazer reportagens. No início dos anos 2010, ela se mudou para a Turquia. "O tempo todo, por mais que eu estivesse aprendendo e gostando daquilo, tinha no fundo da mente que eu voltaria e escreveria romances."

Seu plano era escrever um livro que se chamaria "Duas Vidas", a partir de uma preocupação que tinha escrevendo não ficção. "Os textos da New Yorker devem ser um tipo de perfil no qual para falar, por exemplo, de plantação de cogumelos, você procura o maior produtor de cogumelos, o começa a seguir por aí, e pergunta o nome do cachorro dele", conta ela, rindo.

"Parece que você está escrevendo sobre uma pessoa, mas aí você encontra ela, tem várias interações e tem que deixar tudo de lado porque, na verdade, só a estava usando para falar de plantação de cogumelos." Ela pensava num romance que desse conta do que era deixado de lado e do que não vinha recebendo a atenção devida --seus relacionamentos dolorosos, incluindo o namoro com um homem casado.

Mas sua vida aos 30 parecia próxima demais e a escrita não saía do lugar. "Passei a ter vários flashbacks envolvendo aquela personagem do primeiro livro. Eu havia escrito um romance inteiro e o abandonado", diz. No rascunho, Batuman se deparou com uma frase, sobre a vida no campus e sua troca de emails, que a fez perceber que ela já estava vivendo duas vidas.

Notou que as partes mais interessantes eram aquelas em que Selin (ou ela) fez coisas das quais se envergonhou. "As coisas estúpidas que se fazem aos 18 não parecem tão estúpidas do ponto de vista dos 30." Foi então que decidiu pelo nome "A Idiota". "Escrevi aquilo nos meus 20 anos, tentando soar mais esperta do que de fato era, então, tirei isso e deixei só a jovem de 18."

Seu livro anterior também tinha nome inspirado em Dostoiévski. "Os Possessos" é uma tradução comum em alguns países para o romance que conhecemos no Brasil como "Os Demônios". Em inglês, porém, não dá para saber o gênero de "idiota". "Algumas pessoas acham presunçoso usar títulos de Dostoiévski, então faz eu me sentir melhor saber que, nas traduções em que a palavra tem gênero e, no caso, o do meu livro é feminino, é um pouco diferente do dele."

Mas "A Idiota" pode ser visto, como diz Batuman, como uma fanfic --histórias criadas por fãs a partir de obras anteriores-- de outro romance de outro russo. "Eugênio Oneguin", de Púchkin. Eugene é Ivan, o colega húngaro. "Eugênio é quase uma paródia, se faz de descolado e diferentão, mas Tatiana o conhece e acha o máximo, escreve carta para ele, que a rejeita. E ele estraga tudo o que faz", afirma.

"Púchkin deixa claro que Tatiana é uma pessoa melhor que Eugênio, mais inteligente. E ele é OK, mas não é tudo isso. E ela arruína sua vida por ele. E Anna Kariênina também. Ela é melhor que Vronski, e mesmo assim ela se destrói por ele. Púchkin e Tolstói mostram como as relações são injustas e como as mulheres se acabam por homens que não valiam tudo isso."

Ela diz que, por ser fascinada por livros, sempre quis escrever, mas também que sua vida fosse um romance. "Muitas das minhas decisões foram tentativas de replicar situações que parecessem universais da literatura. E, assim, perdi muitas oportunidades."

A pandemia acendeu em muitos leitores a coragem de enfrentar longos clássicos, entre eles, alguns russos. "Aqui a moda foi bolo de banana e 'Guerra e Paz'", diz Batuman.

Ela acaba de entregar à editora um novo livro, a sequência de "A Idiota", que se chamará "Either/Or", algo como um ou outro, e que a fez pensar sobre a relação de Selin e Ivan. "Em 2016, me apaixonei por uma mulher e estou até hoje com ela. Já deu para mim de homens, chega", diz, rindo.

O novo livro é uma espécie de adaptação romantizada do ensaio "Heterossexualidade Compulsória", da poeta feminista americana Adrienne Rich, que trata de laços entre mulheres e como são sobrepostos pela construção de uma narrativa segundo a qual a mulher tem de se apaixonar por um homem, ser dominada e sua realização sexual só existe verdadeiramente assim.

"Li o ensaio de 1980 apenas recentemente e percebi que, em 'A Idiota', já havia isso", diz.

Sobre as mudanças desde 1995, Batuman diz que a história seria completamente diferente se fosse ambientada hoje. Havia a crença cega no fim da história, diz ela, mencionando Francis Fukuyama.

"Crença de que os problemas acabaram, de que a democracia e o livre mercado se espalhariam pelo mundo, de que todos sabiam que racismo e machismo são errados, não era preciso uma identificação política, a felicidade estava no caminho do indivíduo. Eu cresci com isso."

Segundo ela, nos Estados Unidos, agora, a conversa sobre raça, classe e gênero é outra. "Com certeza não me identificaria como uma mulher heterossexual até os meus 38 anos se tivesse nascido depois."

A Idiota

  • Quando Dia 5/4 nas livrarias
  • Preço R$ 99,90 (488 págs.); R$ 39,90 ebook
  • Autoria Elif Batuman
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Odorico Leal
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