Artistas burlescos vivem drama longe da sensualidade dos palcos, na era da Covid

Profissionais de arte que muitas vezes prosperou às margens da sociedade contam ter perdido o chão na pandemia

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Julia Carmel Kholood Eid
Nova York | The New York Times

A bebida corria solta e o brilho e os paetês eram abundantes quando o The Maine Attraction subiu ao palco no espetáculo semanal de burlesco do Bathtub Gin. Lantejoulas vermelhas desciam de sua nuca até os tornozelos. Mas quando a performer arrancou o vestido, para deleite do público que já minguava, era o começo do fim.

“A apresentadora nos disse ‘pessoal, este foi nosso último show por algum tempo, Nova York está fechando tudo’”, contou Maine, descrevendo a noite de 15 de março de 2020. “Chorei como um bebê.”

Maine e seus colegas performers de burlesco fazem parte dos mais de 1 milhão de nova-iorquinos que perderam seus empregos quando a cidade parou, na primavera passada.

Até dezembro, o índice de emprego no setor de artes e entretenimento em Nova York havia caído 66% —a maior queda de qualquer área da economia da cidade. Um ano mais tarde, os espaços de shows estão escuros e vazios, e alguns dos figurinos dos artistas não servem mais.

Muitos artistas de burlesco ganham a vida na cidade como performers. Outros usam o burlesco como uma válvula de escape para descontraírem depois de seus empregos diurnos, mais convencionais. A cidade é um centro de entretenimento burlesco há mais de uma década, e antes da pandemia era possível encontrar um show do gênero em praticamente qualquer noite da semana, tanto em Manhattan quanto no Brooklyn.

Doze performers locais conversaram com o New York Times recentemente sobre o futuro do cenário burlesco. Muitos estavam ansiosos para vestir suas fantasias e posar nos lugares que frequentavam no passado. Só os seus pseudônimos artísticos estão sendo publicados, porém, devido ao caráter delicado do tema entre alguns empregadores, colegas de trabalho, amigos e familiares.

O burlesco tem uma história rica em Nova York. Além das plumas e dos falsos diamantes e pérolas, o formato permite a esses artistas combinar elementos normalmente vistos em palcos separados. Ali, há espaço para misturar striptease e comédia, sensualidade e tragédia, o belo e o grotesco —e, é claro, para o performer deixar a plateia constrangida.

O início do burlesco em Nova York remete a pelo menos setembro de 1868, quando Lydia Thompson & The British Blondes uniram aspectos dos “shows de pernas” com os “minstrel shows”, tipo de entretenimento racista com esquetes, números de música e outros apresentados por atores brancos usando blackface.

Atrações secundárias como as que ainda hoje são oferecidas em Coney Island também são consideradas performances do tipo burlesco.

A partir do final de março, os espaços de artes e entretenimento de Nova York puderam reabrir com 33% de sua capacidade. Mas os performers de burlesco hesitam em voltar para suas plateias, historicamente íntimas e sensíveis.

Antes da pandemia, Margo Mayhem e The Samson Night, um casal que se apresenta junto como Midnight Mayhem Burlesque, fazia oito shows por semana de seus respectivos espetáculos separados da Broadway, mais cerca de quatro shows de burlesco por semana.

Alguns dias, eles saíam correndo diretamente de seus teatros no centro de Manhattan para se apresentar num show em horário convencional no Le Scandal Cabaret, em Times Square, indo depois para o Slipper Room, no Lower East Side, para o show da meia-noite, antes de finalmente voltarem para o seu apartamento em Woodside, no distrito de Queens.

Samson e Margo conseguiram sobreviver desde que seu trabalho como performers secou. Margo recebeu um auxílio governamental por um período breve e depois começou a dar aulas de pole dance, enquanto Samson passou a narrar audiolivros. Mas eles se preocupam com seus colegas com formação menos convencional, especialmente no caso dos freelancers que tentam obter algum tipo de auxílio-desemprego.

“Performers e artistas são como os filhos bastardos da sociedade”, disse Samson. O burlesco muitas vezes prospera às margens da sociedade, tanto que costuma ganhar força em tempos de interdições ou opressão, mas durante a pandemia mesmo as formas de arte underground perderam o chão. Muitos performers dizem que não fazem ideia de como será o burlesco quando a pandemia chegar ao fim.

Dandy Dillinger, de 33 anos, é padeira e performer de burlesco e vive no East Village. Com a chegada da pandemia, perdeu tanto seu trabalho de padeira quanto a sua carreira de performer. O restaurante para o qual trabalhava fechou em março passado, mas o fechamento da noite nova-iorquina foi muito mais devastador para ela. Dandy estimou que antes da pandemia estava ganhando até US$ 3.300 mensais com burlesco e dança go-go.

Ela abriu uma confeitaria online para conseguir pagar seu aluguel, mas descobriu que o vazio emocional deixado pela ausência do burlesco não podia ser preenchido com cobertura de nata.

“Perdi o tesão. Perdi meu ‘sex appeal’. Deixei de me olhar no espelho”, ela contou. “Engordei pelo menos sete quilos, e minhas roupas não me servem mais.”

Veronica Viper, performer de 42 anos e residente de quarta geração no Lower East Side, fazia shows cheios de malícia para um público barulhento, antes da pandemia. Ela disse que no último ano vem sentindo falta de autoconfiança corporal e dificuldades com sua saúde mental.

“Ganhei peso. Vi muita TV. Afoguei meus sentimentos do jeito que pude”, disse Veronica. Ela explicou que quando uma plateia via seu corpo sobre o palco, isso a ajudava a se sentir visível e ouvida, algo do qual, como mulher trans, ela frequentemente se sente privada.

“A ausência da plateia, da interação e da energia dela —há algo que se perde, sem sombra de dúvida”, disse Nyx Nocturne, de 32 anos, performer não binária que vive em Crown Heights, no Brooklyn. Nyx ainda tem um emprego administrativo, mas durante a pandemia perdeu a renda que recebia como tatuadora e com as apresentações com o coletivo de drag e burlesco queer Switch n’ Play.

Fem Appeal, de 53 anos, passou oito anos produzindo “Kitty Nights”, um dos shows semanais de burlesco encenado por mais tempo em Nova York. Quando o show acabou, em 2014, ela voltou a se apresentar nos espetáculos de outros produtores. Pensou que seus tempos de ficar procurando espaços para trabalhar e juntando cortinas improvisadas haviam ficado para trás.

Quando Nova York entrou em lockdown, “pensei ‘o que quer dizer isso?’”, ela lembra. “Vou ter que voltar a fazer tudo eu mesma?”

Fem ainda tem um emprego regular, mas, como passa seus dias trabalhando com adultos com deficiências no desenvolvimento, o burlesco era sua válvula de escape ao fim de um longo dia de trabalho, uma catarse que ela diz que as performances virtuais não proporcionam.

Todos os performers concordam nesse ponto. “O burlesco é um barômetro cultural. O que você vê e o que você consegue fazer é a vanguarda”, disse Veronica. “É a ponta de lança. As coisas avançam a partir desse ponto.”

Zoe Ziegfield, de 35 anos, que mora em Bedford-Stuyvesant, no Brooklyn, ainda trabalha como babá, mas perdeu todos os seus trabalhos como performer, incluindo um trabalho ocasional como encantadora de serpentes com a Metropolitan Opera.

“Dói pensar na noite e em tudo que perdi”, disse Zoe. “Por outro lado, há outras coisas que talvez sejam mais importantes neste momento.”

Jo Weldon, de 58 anos, que também se apresentava como Jo Boobs, abriu a New York School of Burlesque em 2004 depois de passar quase três décadas fazendo strip, trabalhando como modelo e imersa em movimentos queer punk.

Com a escola, ela virou autoridade no neoburlesco, tanto que deu aula a muitas pessoas da safra atual de performers de burlesco, incluindo Veronica, Fem, Rose, Nyx e Louise. Quando a escola fechou as portas, na primavera do ano passado, Jo começou a dar aulas online. Mas diz que não tem sido fácil ganhar dinheiro assim.

“Recebo talvez um quarto do que ganhava antes”, ela comentou. “E a escola mal era sustentável antes, para começo de conversa.”

Apesar dessas dificuldades, Jo se mudou recentemente para o East Village com Jonny Porkpie, que está fazendo um mestrado em literatura infantil. Jonny, que é seu companheiro, acha que a situação atual também vem pressionando os performers de burlesco de algumas maneiras positivas.

“Tem sido fantástico ver como as pessoas se adaptam e são inspiradas pelas limitações”, ele disse. “Não é sempre assim que acontece? Quanto maiores as limitações, mais sua cabeça se expande para fazer coisas criativas.”

As performers dizem que quando houver condições para voltarem ao palco em segurança, o ambiente do burlesco terá sem dúvida mudado.

“Acho que todos nós teremos receio de ficar muito perto de outras pessoas por algum tempo”, comentou Nyx. “Penso no fato de que antes a gente punha dinheiro na boca o tempo todo, ou pegava dinheiro com a boca das mãos ou da boca das pessoas.”

Mas, apesar dos receios, elas estão ansiosas pelo retorno da noite. “As pessoas vão fazer tudo muito intensamente”, disse Zoe. “Acho que esse é o jeito nova-iorquino. Sei que as pessoas querem dizer que Nova York morreu, mas quem diz isso não está olhando com muita atenção.”

Tradução de Clara Allain

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