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Brilho de Roberto Carlos talvez afaste reflexão crítica sobre sua obra

Força do canto de um dos maiores nomes da música brasileira potencializa versos curtos e melodias simples

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O cantor e compositor Roberto Carlos Acervo UH/Folhapress

Sidney Molina

É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

Roberto Carlos tem canções simples, com versos curtos, diretos. Em geral há silêncio entre as frases, como se a letra esperasse, calmamente, a música caminhar, compassada, entre seus poucos acordes.

Espremida entre os gritos adolescentes da Jovem Guarda e um longuíssimo período de acomodação criativa —a partir de 1983 (ou 1984), e que segue, com raras exceções, até o presente— a obra autoral mais forte do cantor vai de seus 27 anos até pouco mais de 40, isto é, do final da década de 1960 ao início dos anos 1980. Neste mês, o artista completa 80 anos.

Sua fase áurea inclui um conjunto de canções e interpretações que se desdobram para além do impacto geracional e do incontestável sucesso comercial. Aliás, o sucesso parece mesmo afastar a reflexão crítica sobre essa produção, como se não pudesse haver um artista singular por trás dos 140 milhões de álbuns vendidos.

Se o tema central de Roberto é o amor, se sua persona poética é o “eu profundo”, é importante mapear, no seio de sua obra, os vários momentos da relação amorosa. O primeiro deles é o puro querer juvenil —como em “Quero que Vá Tudo pro Inferno”, de 1965.

Aos poucos, no entanto, o desejo se desloca do “quero porque quero” para o próprio ato amoroso, como em “Amada Amante”, de 1971, “o amor que supera o que já fez”, e para as qualidades do ser amado, tal como em “Olha”, de 1975.

“Olha” é uma obra-prima de Roberto e Erasmo, que merece estar em toda coletânea do cancioneiro brasileiro. A melodia hesitante, que inicia pelo passo curto de semitom, e o foco nos limites (“você vive tão distante/ muito além do que eu posso ter”) trazem camadas precisas de sensibilidade e um nível alto no artesanato da palavra cantada.

O temor da perda —a insegurança— também gera belas interpretações de Roberto, ao menos desde a gravação de “Ninguém Vai Tirar Você de Mim” —de Hélio Justo e Edson Ribeiro—, usada explicitamente na trágica cena final do filme “Matou a Família e Foi ao Cinema”, de 1969, de Júlio Bressane.

Sobre o mesmo tema Roberto e Erasmo escreveram “Sua Estupidez", de 1969, celebrizada por Gal Costa em gravação marcante.

As canções de separação também se destacam em sua discografia, como na dramática “O Show Já Terminou”, de 1968 —o romance visto como espetáculo, numa interpretação sofisticada de Roberto; ou em “Fera Ferida”, de 1982, um solilóquio eloquente, com frases metricamente desiguais e um brilhante sentido de coloquialidade —acentuado ainda mais na gravação de Maria Bethânia.

O tema mais recorrente evocado por Roberto é, porém, a saudade, a solidão, a impossibilidade do retorno. A lista de belas canções aqui é bem maior, a começar por “Detalhes”, de 1971, mas que inclui igualmente clássicos como “As Canções que Você Fez pra Mim”, de 1968, “Como Vai Você” e “A Distância”, ambas de 1972.

“Distância”, aliás é uma das palavras mais caras a Roberto, e não só por sua presença no refrão da canção de 1972 que a elege como título (“e na distância morro/ todo dia sem você saber”), mas também —apenas para citar alguns exemplos— em “A Cigana”, de 1973, “na distância vi seu vulto desaparecer” e nos versos antológicos “um amor que eu tive/ e vi pelo espelho/ na distância se perder”, de “As Curvas da Estrada de Santos”, de 1969.

Ninguém canta tão bem essas músicas como ele próprio. Roberto usa com muita sabedoria a pequena extensão vocal que possui e, como poucos, sabe preparar a emotividade exata dos pontos culminantes agudos.

Para tentar amenizar a dor da perda há as canções de retorno, como a cinematográfica “O Portão”, de 1973, além da abordagem de temas como ecologia e religião; em geral, nesses casos, predominam os clichês, quando não o puro mau gosto —“Jesus Cristo”, de 1970, é uma notável exceção.

Em algumas poucas canções Roberto Carlos tematiza a razão de ser de sua vida –o próprio ato de cantar. Quem supre esse repertório é Caetano Veloso, responsável por ao menos três das canções cujos versos explicitam a missão do cantor: “Como Dois e Dois”, do extraordinário LP de 1971, “Muito Romântico”, de 1977, e “Força Estranha”, de 1978.

Caetano parece entender completamente as qualidades e potencialidades expressivas de Roberto. “Digo, não digo, não ligo/ deixo no ar/ eu sigo apenas porque gosto de cantar.”

Queiramos ou não, aquilo que chamamos música popular brasileira se dá —há já quase seis décadas— num espaço sonoro cujo contorno é dado por Roberto Carlos. É ele o céu azul e o sol sempre a brilhar.

Erramos: o texto foi alterado

O período de acomodação criativa de Roberto Carlos teria começado em 1983 ou 1984, não 1983 ou 1934. O texto foi foi corrigido.

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