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Walter Salles

Contardo

Walter Salles escreve sobre filme inacabado que planejava com o amigo Contardo Calligaris, morto na terça (30)

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Walter Salles

Cineasta brasileiro, diretor de ‘Central do Brasil’, 'Diários de Motocicleta’, entre outros

​“Ele se foi.” Haveria um antes e depois daquele momento. “Quando certas pessoas morrem, é como uma biblioteca que pega fogo”, disse o historiador malinês Amadou Bâ.

Contardo Calligaris provavelmente discordaria. “Derramado demais”, diria sorrindo. Essa ironia que o caracterizava faz uma falta e tanto agora que tento organizar a memória.

Ficamos amigos em 1998. Estava trabalhando no lançamento de “Central do Brasil” nos Estados Unidos. Contardo morava perto de Boston, e um amigo comum nos pôs em contato. Marcamos um almoço num café italiano e só saímos de lá à noitinha. E assim foi nos dias seguintes. Quando duas pessoas se entendem, são as crianças nelas que se tornam amigas, dizia um escritor francês.

“Hello, Brasil!” tinha sido uma referência para Daniela Thomas e para mim, quando filmamos “Terra Estrangeira”, em 1994. O livro fora publicado no início dos anos 1990, um ponto de inflexão em nossa história. O país lutava para se recuperar do trauma de 25 anos de ditadura militar, do regime da tortura e dos desaparecidos e já encarava outra tragédia: o desgoverno Collor. “Hello, Brasil!” deu nome à nossa crise identitária e nos ofereceu um reflexo possível de nós mesmos.

Contardo nos propunha o seguinte xadrez: na base dos desequilíbrios estruturais brasileiros, há o embate entre dois invasores de uma terra que imaginavam edênica. De um lado, o colonizador, que veio impor uma língua e explorar à exaustão um corpo que não o seu (capitanias hereditárias, Serra Pelada, Transamazônica, Mariana, Muzema, você sabe). Do outro, o colono que abandonou a língua materna e viajou para essa nova terra em busca de um nome e de uma cidadania negada na origem.

Em “Hello, Brasil!”, as fronteiras entre o colonizador e o colonizado fugiam à oposição binária. Em “Terra Estrangeira”, os personagens Paco e Alex são ao mesmo tempo vítimas e algozes. Não à toa, citamos o livro “Hello, Brasil!” desde a primeira entrevista sobre o filme.

Quando ele passou a colaborar semanalmente com a Folha, em 1999, sua influência se tornou ainda mais abrangente. Dizia que o exercício semanal de reflexão o ajudara a ir além do discurso psicanalítico. Suas crônicas puderam ser compartilhadas com um arco mais amplo da sociedade.

Essa prática em nada diminuiu sua mordacidade. Nem o ângulo de ataque, original e iluminador. Questionava para elevar o debate. Era lúcido e cético, nunca cínico. Escrevia com intensidade, calorosamente. E quando o assunto permitia, havia leveza e autoironia, talvez um legado de Italo Calvino, escritor que admirava.

Tudo que era humano lhe interessava. Por caminhos inusitados, o simples cotidiano se tornava extraordinário. Em seus textos não havia dribles desnecessários. Havia, sim, um desejo de não resistir ao encantamento. Não receava dizer que amara um livro ou um filme. A crônica que escreveu sobre “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é uma mostra disso.

“Quero viver em Bacurau”, escreveu. Aquela sociedade libertária, impura e resiliente o fascinara. O colono se vingava finalmente do colonizador, cumprindo a utopia prenunciada em “Hello, Brasil!”. “Eu sentia em Contardo uma dessas vozes da cultura no país que me ajudavam a entender o que se passa, como uma boia meteorológica”, diz Mendonça Filho. Muitos concordariam. Ele era um mestre que nos ajudava a refletir e que preferia cultivar amigos a formar discípulos.

Era arraigadamente progressista e independente. Influenciado por Gramsci e Togliatti, militou no Partido Comunista italiano durante a juventude. Sob a orientação de Roland Barthes, sua tese de doutorado investigou as raízes do autoritarismo e o capacitou a dissecar com agudeza um tecido social como o
brasileiro. “No fundo, é uma meditação sobre a ideia central de Hannah Arendt em ‘Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal’”, ele escreveu.

Na crônica “Meu vizinho genocida”, de 2013, Contardo nos lembra que Eichmann, responsável pela logística dos trens que conduziram milhões de judeus ao extermínio nos campos de concentração, não era um exaltado ou um monstro. Era medíocre e banal. “Podia ser o vizinho do apê ao lado”, escreveu.

“O vizinho alega as ordens, a ordem ou a fidelidade a qualquer grupo que seja, tudo porque quer parar de pensar: essa é sua culpa original e mais grave, graças à qual ele se torna capaz de agir como se não existissem considerações morais.” Poucas ideias são mais certeiras sobre o perigo autoritário que paira sobre o Brasil hoje.

Contardo disseminava essas pensatas para além da imprensa escrita, em seminários, conversas, debates.
Criador em fermentação constante, foi um precursor das séries brasileiras de TV com “Psi”, da qual era criador, roteirista e diretor-geral, amealhando prêmios e indicações ao Emmy Internacional. Não sei como fazia para encontrar tempo para tanto, mas uma coisa é certa: conseguia. “Sem diretores como Laís Bodanzky e Max, não iria longe”, me disse mais de uma vez, falando da diretora do ótimo “Bicho de Sete Cabeças” e do talentoso filho cineasta.

Corta.

Nós conversamos bastante durante a pandemia. Sua primeira pergunta era sempre “como você está?”, independentemente das notícias do dia. Era reservado e discreto, e genuinamente interessado no que ouvia.

Em dezembro, transpôs uma fronteira sobre a qual pouco falávamos, por pudor ou desejo de não sermos invasivos. Disse que a doença que o acometia havia avançado e que o tempo que lhe restava era incerto.

Tinha enviado para um amigo editor a base de um pequeno livro inspirado em “O Sentido da Vida”, conferências que havia dado no ciclo Fronteiras do Pensamento. Mas lhe faltava escrever um segundo livro, “Europa”, um olhar sobre o continente que tinha deixado para trás. Propôs então fazermos um documentário que lhe permitiria deixar um registro oral desse projeto.

Liguei para Walter Carvalho, eterno companheiro de viagem, e o convidei para ser nosso diretor de fotografia. Waltinho aceitou imediatamente. Junto com Max, que correalizaria o filme, começamos a ler os textos que Contardo nos enviava e a reler “Hello, Brasil!” e “Cartas a um Jovem Terapeuta”.

“Uma certa pressa para ver o que consigo ainda dizer, contar, narrar, antes de dar a dormidinha final”, me escreveu em dezembro. “O filme será, claro, o que você quiser, mas inevitavelmente entre os dois livros. Teria gostado de te mandar um sabor dos dois, mas logo me dei conta que, se eu começar a escrever ‘Europa’, matarei ‘O Sentido da Vida’ instantaneamente. Eu acho que poderei escrever ‘Europa’ e fazer o filme ao mesmo tempo, porque serão diferentes e porque, longe de se inibirem, os projetos se alimentarão.”

Enviou fotos de seu passado. A mãe com o irmão nos braços, na inocência do pré-Guerra. O pai, médico cardiologista e admirador de Norberto Bobbio, que se tornou “partigiano” em 1943 e lutou contra o fascismo. Imagens de Barbania Canavese, onde a família Calligaris tinha raízes desde 1500. O pequeno irmão sobre um tanque de guerra, festejando a libertação da Itália, em 1945. E uma foto dele, Contardo, aos dez anos , em Stromboli, o olhar ávido por desvendar o mundo.

Chegamos a escolher o local onde ocorreria a gravação. Uma internação em janeiro suspendeu nossos planos. Vieram semanas cada vez mais angustiantes. Trocamos mensagens, mas elas se tornaram raras. No último contato, possibilitado por seu filho Max e o carinho de sua mulher, Malu, pudemos nos despedir. E eu disse como ele era querido, falei da sua importância para tantos amigos etc. (Deixo esse momento para a imaginação de cada um.) “Espero estar à altura”, ele disse.

“A vida não deveria ser uma, mas duas. A primeira para ensaiar, a segunda para viver”, disse uma vez Vittorio Gassman. Contardo viveu sua vida de forma plena e incandescente. Não lhe foi necessário o ensaio, creio. Viveu os dias de Maio de 68 e o legado de Barthes e Lacan. Lecionou em Berkeley, berço da contracultura americana que admirava. Mas se apaixonou mesmo pelo Brasil —não faltaram avisos em contrário.

“Esse país não presta”, ouviu. No momento em que Contardo escreveu “Hello, Brasil!”, estávamos, como hoje, numa profunda crise identitária. Isso não o impediu de pensar que poderia haver um futuro possível aqui, e lutar por ele. Foi um dos pensadores que, não tendo nascido no Brasil, sentiram o país com profundidade.

“Nós que o amávamos tanto”, escrevi para Jurandir Freire Costa, seu querido amigo. “C’eravamo tanto amati”, respondeu, lembrando o título original do filme de Ettore Scola. E completou, expressando em italiano a falta que sentia: "Como ele 'mi manca'”.

E a nós também.

Contardo Calligaris
Contardo Calligaris em seu consultório, em São Paulo, em foto de 2011 - Karime Xavier/Folhapress
Erramos: o texto foi alterado

O nome do livro de Contardo Calligaris é "Cartas a um Jovem Terapeuta", e não "Cartas a um Jovem Psicanalista". O texto foi corrigido.​

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