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Filme do É Tudo Verdade é réquiem a Gorbatchov, o último líder soviético

Retrato do ocaso do político, hoje nonagenário, é mais revelador pelo que ele não diz às câmeras

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São Paulo

Gorbachev.Céu

  • Quando Domingo (11), às 19h
  • Onde No Looke
  • Produção Letônia e República Tcheca, 2020
  • Direção Vitali Manski

Mikhail Sergueiévitch Gorbatchov, o derradeiro líder da União Soviética, está morrendo. Ele sabe disso, e os espectadores do mais recente documentário sobre o político, "Gorbatchov.Céu", de 2020, são relembrados o tempo todo.

Assim, o nonagenário tenta modular suas palavras finais, em especial quando encarna o fracasso de sete décadas de experimento comunista ao olhos de seus conterrâneos.

Em 1986, os líderes da União Soviética, Mikhail Gorbachev (esq.), e da Alemanha Oriental, Erich Honecker, se cumprimentam com um beijo fraterno - Gaby Sommer/Reuters

Fora da Rússia, ele é um herói, lembra o diretor e entrevistador Vitali Manski, ele mesmo um filho do sistema: ucraniano soviético que cresceu como russo, ele hoje trabalha com uma produtora letã por ter caído em desgraça junto ao Kremlin graças a seu brilhante trabalho anterior, "Testemunhas de Putin" (2018).

Neste ponto, Gorbatchov lacrimeja. Afinal, lembra Manski, dentro da Rússia ele é odiado ou ignorado. Ele tenta escapar retoricamente, mas é isso. Não há estátuas dele pelo país que comandou de 1985 a 1991.

Diferentemente do que acontece com o fundador do império comunista, Vladimir Lênin (1870-1924), a quem Gorbatchov chama de "nosso Deus". "Eu ainda me vejo como um socialista", diz.

Essa é uma asserção extrema, dado que há socialismos variados vivos, goste-se ou não deles. Mas ela vai ao fundo do documentário de Manski: para os russos, Gorbatchov é associado à decadência dos anos 1990, não ao sopro da liberdade política (glasnost, transparência) e econômica (perestroika, reestruturação) dos 1980.

O diretor consegue uma proeza. Em seu ocaso, Gorbatchov vem sendo disputado para o "depoimento final". O último tiro nesse sentido veio do mais afamado documentarista atual, o alemão Werner Herzog.

Só que seu "Encontro com Gorbatchov" parece uma atividade recreativa para idosos solitários perto do filme de Manski —que pula a contextualização e desfile de imagens de arquivo, até porque isso ele fez em um pequeno documentário de 2001 sobre Gorbatchov, cujas tomadas o alemão usou, aliás.

Isso serve ao filme, apesar de Manski ser um fã. Chega a dizer que "tínhamos democracia sob Gorbatchov" e hoje, após 21 anos com Vladimir Putin no Kremlin, "há uma ditadura".

Ambas as frases são exageros, mas ajudam a espremer a grande e plúmbea imagem do entrevistado no filme que estreia agora no festival É Tudo Verdade.

Em nenhum momento Gorbatchov consegue explicar a contradição aparente de ser um socialista que amava seu país e a incapacidade de mantê-lo unido. "Não poderia fazer como meus antecessores, mesmo Lênin", diz, referindo-se a fuzilar a oposição.

Ao mesmo tempo, se põe na defensiva ante o massacre de manifestantes em Vilnius, na Lituânia, no começo de 1991. "Você quer me levar para um tribunal?", questiona.

Em relação a Putin, o seu silêncio é muito eloquente. Apenas descreve como foi ignorado pelo czar do século 21 e murmura, questionado acerca da ditadura que Manski aponta, que "não é fácil", sobre o ato de governar.

Ao mesmo tempo, Putin perpassa todo o filme, como um espectro.

Enquanto Gorbatchov rumina, como um rei Lear russo, sobre sua realidade pós-poder —"quem se importa?", questiona, sobre sua opinião—, o presidente russo está lá, falando sobre qualquer coisa numa tela difusa sintonizada no canal estatal Rússia 1 atrás dele.

Já sobre o seu sucessor, e antecessor de Putin, Boris Ieltsin (1931-2007), sobra fel. "Um idiota", diz, bruscamente, lembrando que "o bêbado" tomou uma garrafa de uísque em seu gabinete após expulsá-lo do Kremlin no dia depois de sua renúncia, em 25 de dezembro de 1991.

Sobre aquele período, mais confusão. Ele se nega a dizer quem de fato tirou os aparelhos do moribundo soviético, se ele ou Ieltsin, o presidente da Rússia que lhe salvou de um golpe de Estado em agosto de 1991 só para se livrar dele meses depois.

Manski, fã, se desespera pela falta de clareza. Gorbatchov se retrai em sua maciça figura, elemento central do documentário —que não é enciclopédico, sem explorar o desastre de Tchernóbil (1986), por exemplo.

Como Lênin está no mausoléu da praça Vermelha, seu último sucessor se arrasta com um andador por uma mansão enorme e vazia, exceto pelo gato ocasional na tela e por prestativos funcionários.

Todos pagos pelo Estado, que transformou a casa arrendada por líderes de países ex-soviéticos em uma espécie de mausoléu. O resto das faturas é coberta pelo dinheiro de palestras, que chegou a US$ 400 mil —cerca de R$ 2,2 milhões— certa vez, diz Gorbatchov, relatando problemas com a Receita.

Cercas altas com câmeras e alarmes dão também um aspecto de bunker ao local. Lentamente, Gorbatchov se desloca e lembra seu fiel empregado Volodia, diminutivo de Vladimir, que seu tempo está se esgotando.

Se isso parece depressivo, e é, há compensações no humor solar que o político encerra. Sua paixão pela poesia pastoral do suicida Serguei Iesenin (1895-1925) emerge com declamações fortes, assim como quando entoa canções folclóricas.

Há vida no homem, com sinais da vivacidade dos velhos tempos ao ver que falou um palavrão, pediu uma vodca ou brincou com um cachorrinho.

Ele não perde uma piada sobre a decadência física. Visitando o túmulo de sua mulher Raíssa, morta por câncer em 1999, ele aponta para "o lugar reservado ao lado" para ele.

A amada, aliás, é um fantasma que adorna canto do mausoléu em que Gorbatchov vive antes de ser transferido a um hospital. A vida, sem ela, "perdeu o sentido".

Aos 90 anos, neste documentário ele encarna parte da vertigem do século 20, com a fundamental incompreensão de seus processos finais e a indignação por isso.

Tudo é condensado numa cena do Ano Novo de 2020, antes da distopia pandêmica se abater sobre o planeta. Gorbatchov está com Volodia, sua mulher Tania e a equipe de filmagem na casa do auxiliar.

Ao fundo, sempre ele, Putin fala algo edulcorado sobre valores familiares na TV. Gorbatchov deixa cair seu aparelho auditivo. Quando tudo acaba, bate a meia-noite e sobe o hino russo.

Putin resgatou a melodia soviética e alterou parte da letra, mas alguns trechos ficaram iguais, como o "salve, nossa pátria livre!".

"E quem trouxe a liberdade?", diz, à meia voz, como que clamando reparação, num dos raros momentos em que sua fala revela mais que o silêncio.

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