Drama austríaco discute desgastes que o processo de fertilização pode trazer

Longa foi discutido na terça-feira (13) em mais uma edição do Ciclo de Cinema e Psicanálise

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São Paulo

Quando um casal passa pelo processo de fertilização, um dos principais aprendizados é o de lidar com a frustração e, em alguns casos, o de elaborar o luto das diversas perdas que podem ocorrer nessa trajetória.

Para as debatedoras do Ciclo de Cinema e Psicanálise, evento realizado nesta terça-feira (13) pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a tradução mais adequada para o título do filme austríaco “What We Wanted”, de Ulrike Kofler, seria a literal: “O que nós queríamos”. Isso definiria bem, para a repórter especial da Folha Cláudia Collucci, a falta de controle e as reviravoltas nos planos que podem ocorrer durante o tratamento. Mas a escolha de “Quando a Vida Acontece” também se mostrou um importante recurso para ampliar as discussões que o longa propõe, como as angústias presentes na vida da maioria das pessoas.

“A cada menstruação, a cada fertilização, a cada aborto, é um luto, mais uma vez que não veio a gravidez. É um luto do projeto de vida que você tinha traçado. Para seguir em frente e fertilizar a vida de outras formas, é preciso encerrar aquela etapa para ter espaço para o novo”, afirmou Collucci, que já viveu essa experiência e é autora dos livros “Quero ser mãe” (ed. Palavra Mágica) e “Por que a gravidez não vem?” (ed. Atheneu), nos quais entrevistou casais e médicos especialistas no assunto.

O filme discorre sobre a infertilidade do casal vienense Alice (Lavinia Wilson) e Niklas (Elyas M'Barek) que, após a quarta tentativa frustrada de gravidez, resolvem sair de férias para um resort em Sardenha, na Itália. Aparentemente, os dois estão em harmonia e desejam se reconectar nesse período, mas os conflitos começam a aparecer à medida que convivem com a família no chalé vizinho, composta por um casal e dois filhos, e são obrigados a encarar elementos ausentes em seu relacionamento.

Baseado no conto “Der Lauf der Dinge” (“O Percurso das Coisas”, em tradução livre), do escritor suíço Peter Stamm, o filme expõe o desgaste físico, emocional e financeiro desse casal. Os dois enfrentam uma grave crise conjugal e já não conseguem mais ter momentos de intimidade, visto que estes estão sempre associados à tentativa de engravidar.

Cena do filme 'Quando a Vida Acontece', na Netflix
Cena do filme 'Quando a Vida Acontece', na Netflix - Divulgação

“A morte da potência, a morte da fertilidade, a morte dos sonhos de cada um se avolumam e se condensam na hipótese da separação do casal”, diz a psicanalista Luciana Saddi, que fez a mediação do debate. Para ela, a protagonista se encontra despedaçada internamente e associa as crianças que encontra, como a menina Denise, com os filhos que não consegue gerar.

O suposto fracasso de Alice a faz questionar sua feminilidade e associa a realização da maternidade apenas à ligação biológica com o filho. Para a psicanalista Gina Khafif Levinzon, coordenadora do Grupo de Estudos sobre Adoção e Parentalidades da SBPSP e autora de diversos livros sobre o tema, a protagonista idealiza a hereditariedade como sinônimo de laços fortes e saudáveis entre pais e filhos. Ela aponta que a reprodução é um anseio primordial do ser humano, que tenta se realizar no campo biológico e psíquico, além de ser uma defesa da finitude.

Em sua fala, ela cita o texto “Sobre o Narcisismo: Uma Introdução”, escrito por Sigmund Freud (1856-1939), em 1914. Nele, o psicanalista analisa como os pais depositam esperanças nos filhos, pensando que irão realizar seus próprios ideais narcísicos. “A impossibilidade de gerar um filho representa a ferida não só nos nossos desejos, mas na imagem que temos de nós mesmos. Ela é acompanhada de alterações nos sentimentos de identidade porque implica renúncia do ideal de ego.”

As debatedoras também reforçaram a importância da empatia e companheirismo do médico que irá acompanhar o processo, que é tão desgastante para o casal. Para Collucci, é um dos momentos de maior vulnerabilidade de uma mulher, pensando em todos os riscos envolvidos e toda a dependência emocional inserida nesse contexto. “Eu me senti o tempo inteiro um ratinho de laboratório”, diz a jornalista.

“Toda a humanidade, o desejo, que é presente no encontro amoroso e sexual de um casal de esvai num tratamento frio e programado de procedimentos de laboratório. É nisso que acaba se tornando esse processo de conceber um filho”, afirma a psicanalista Gina Levinzon.

Tanto a jornalista como a psicanalista veem com esperança a revisão da importância da maternidade na sociedade. Apesar de pensarem que a cobrança por parte de familiares, amigos e até desconhecidos ainda vá continuar por tempo indeterminado, percebem que a maior presença das mulheres no mercado de trabalho tem moldado esse pensamento. Essa reformulação de ideias também aparece no final do filme, quando o casal protagonista olha para o buraco no sótão da casa em construção e decidem que será uma janela para observar a paisagem.

“Penso que houve um processo de depuração das angústias, dos sentimentos, dos rancores deles. Eles puderam se falar e dizer um para o outro o que estavam sentindo e isso tudo de alguma forma os modificou. Olham para a janela e agora começam a enxergar de forma mais ampla.”

O Ciclo de Cinema e Psicanálise é realizado quinzenalmente, com apoio da Folha, e é transmitido pelo canal do Museu da Imagem e Som, o MIS, no Youtube. A próxima edição será no dia 27 de abril, às 20h, com o filme “Pieces of a Woman”, disponível na Netflix.

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