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Encrenqueira, 'deusa das serpentes' Suzy King inspira documentário e biografia

Artista foi também dançarina exótica, vedete, cantora e dramaturga, mas se destacou pelas confusões em que se metia

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São Paulo

O ano era 1959. Suzy King decidiu que quebraria o recorde mundial das faquiresas, então em momento de grande popularidade no país. Para atrair a atenção do público, como não tinha empresário ou relações públicas, arranjou um cavalo branco emprestado e atravessou a avenida Rio Branco, na região central do Rio de Janeiro, vestindo só um biquíni e uma peruca loira na cabeça.

O cavalo era puxado por um homem fantasiado de índio. Um pouco à frente dele, outro homem carregava uma placa anunciando –“hoje, Suzy King, a maior faquiresa do mundo, 110 dias em jejum", chamando o público para um endereço em Copacabana.

Uma pequena multidão foi se formando em volta da cena, com gente aplaudindo, mas também gritando, protestando. De repente, alguém puxou a peruca de Suzy King. Outro, a parte de cima do biquíni. Um terceiro arrancou a parte de baixo. O homem vestido de índio tentou proteger a vedete, mas levou chutes e safanões, então saiu correndo. O cavalo foi queimado com bitucas de cigarro, e um sujeito subiu na garupa de Suzy e a jogou no chão.

A faquiresa saiu correndo, enquanto vários homens passavam a mão nela. Um investigador que viu tudo sacou o revólver e deu um tiro para cima, para espantar a multidão. Moradores dos prédios em volta jogavam baldes d’água para ajudar a moça em perigo. Finalmente, alguém emprestou uma camisa para que ela se cobrisse. Outro se solidarizou e ofereceu seu blusão xadrez.

Foi vestida assim que Suzy King pegou um táxi e rumou para o 7º Distrito Policial do Rio de Janeiro, para prestar queixa. Alegou que havia sofrido um prejuízo enorme, porque seu biquíni era bordado com pérolas verdadeiras. O comissário ouviu seu relato com atenção, mas concluiu não ver sinais de agressão.

Suzy não podia esperar muito na delegacia, já estava quase na hora de começar a exibição que ela anunciava, na galeria Ritz, em Copacabana.

A artista chegou pontualmente ao local marcado, uma das lojas da galeria, separada do público por uma cortina. Com um novo biquíni e na companhia de duas cobras, Suzy King se acomodou numa urna de vidro, forrada com um colchão macio no lugar da cama de pregos usada por faquires mais tradicionais. Ali, prometia, passaria os próximos 110 dias sem ingerir nenhum alimento.

Só o público pagante poderia ver a faquiresa, que tinha assinado um contrato com a galeria, que ficaria com uma porcentagem da renda da bilheteria. Mas o público não apareceu. Suzy King foi ficando desesperada, mas não podia quebrar o contrato ou teria de arcar com o prejuízo.

Depois de bolar um plano com sua empregada de botar fogo na cortina da loja para ter uma desculpa para sair dali, resolveu agir por contra própria e fugiu de fininho, na madrugada do 53º dia, quebrando a urna a marteladas.

Foi flagrada, no entanto, pelo segurança da galeria, um ex-lutador de boxe chamado Nocaute Jack, que correu atrás dela e a alcançou na avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde a faquiresa tentava parar um táxi. Mais uma vez, Suzy King foi parar na delegacia, dessa vez no 2º Distrito Policial. Lá, se pôs a gritar enfurecidamente e acabou se atirando no chão, numa suposta crise de nervos.

Foi para casa medicada, a bordo de uma ambulância. Nunca mais tentou bater o recorde mundial de jejum.

Retrato de Suzy King que integra o documentário "Fakir"
Retrato de Suzy King que integra o documentário 'Fakir', de Helena Ignez, de 2019 - Divulgação

A história chegou aos jornais da época, assim como muitas outras passagens da vida dessa artista, que não se destacou por nenhum talento especial, a não ser o de fazer valer a sua vontade e arrumar muitas confusões.

Mais recentemente, Suzy King despertou a atenção de dois historiadores e produtores culturais interessados no faquirismo, Alberto de Oliveira e Alberto Camarero, que se denominam “os Albertos”. “Começamos tentando localizar a faquiresa Verinha, que eu tinha visto em uma apresentação em 1958, em Campinas, aos oito anos de idade, e nunca mais esqueci”, conta Camarero, o mais velho da dupla, nascido em 1950.

“Consegui localizar a Verinha em 2012”, diz Oliveira, o mais novo, nascido em 1992. A ex-faquiresa está viva, não gosta de se lembrar do passado e hoje em dia toma conta de um restaurante em Belo Horizonte. “Mas durante essa pesquisa, o nome de Suzy King não parava de aparecer, e nos despertou a vontade de saber mais sobre ela”, disse ele.

O resultado é o curioso docudrama “A Senhora que Morreu no Trailer”, sobre Suzy King, exibido uma única vez até agora, na sexta edição do festival Yes, Nós Temos Burlesco, que neste ano homenageia a artista. E a recém-lançada biografia em forma de almanaque “Suzy King - A Pitonisa da Modernidade”, da editora Veneta.

“Suzy King é a vovó do burlesco atual”, diz Alberto Camarero. “E é moderna porque sempre teve atitude, foi muito fiel aos próprios desejos, nunca deixou de lutar pelo que acreditava, quando se sentia injustiçada procurava a polícia, ia à imprensa”, completa. “Hoje em dia ela seria uma dessas celebridades underground que vivem na mídia”, aposta o autor.

Mas ela não foi sempre Suzy King. Nascida Georgina Pires Sampaio, em Jequié, na Bahia, em 1917, abandonou a família ainda adolescente, grávida de seu único filho, Carlos, que hoje tem 88 anos e mora em Governador Valadares, no interior mineiro.

Em 1939, no Rio de Janeiro, ela se lançou no mundo artístico como Diva Rios, cantora e bailarina. Em seguida, incorporou o visual de Luz Del Fuego, incluiu serpentes em suas apresentações e virou a dançarina exótica Suzy King. O próximo passo foi o faquirismo. Foi também com esse pseudônimo que escreveu marchinhas de Carnaval, peças de teatro e participou de concursos de beleza.

Encerrou a vida artística como Jacuí Japurá, “a Rainha do Amazonas”, persona que adotou quando fez uma plástica, tirou novos documentos, diminuindo 17 anos de sua idade, e levou suas cobras para uma turnê pela América Latina, em meados dos anos 1960.

Morreu em 1985 como Jackie Bailey, na companhia de uma píton albina, num trailer estacionado na cidade de Chula Vista, no condado de San Diego, na Califórnia, naturalizada americana.

A Senhora que Morreu no Trailer

  • Quando Sem data de estreia
  • Produção Brasil, 2020
  • Direção Alberto Camarero e Alberto de Oliveira

Suzy King, a Pitonisa da Modernidade

  • Preço R$ 119,90 (208 pág.)
  • Autor Alberto Camarero e Alberto de Oliveira
  • Editora Veneta
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