Descrição de chapéu Artes Cênicas

'Há eternidade na figura de Cacilda Becker', escreve Fernanda Montenegro

Atriz conta visita que fez com a colega, líder política, a um poderoso militar para clamar contra a ditadura; leia

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Fernanda Montenegro

Atriz, sucedeu Cacilda Becker como primeira atriz do Brasil

Mistério tem Cacilda:

Não creio que esse fenômeno vá acontecer novamente na história do teatro brasileiro: um milionário investir, sem volta, para que um grupo de atores e diretores importantes realize o seu sonho sobre um palco.

Como se cumpriu este milagre?

Tenho uma visão mística para a existência do TBC: Cacilda Becker tinha de cumprir o seu destino de grande, grande atriz. É uma ligação ao sagrado: aquele talento tão explosivo tinha que se cumprir.

Não tenho notícia de nenhuma atriz, nenhum ator, no mundo, cumprirem um repertório tão referencial em tão pouquíssimo tempo. O TBC nasceu para Cacilda. E Cacilda reinou absoluta no seu trono.

Sua luz justificou e glorificou aquele palco. A partir da saída dessa grande atriz para o seu próprio grupo dramático aquele espaço teatral/cultural foi se apagando.

Outra dimensão de Cacilda tem que ser lembrada nesta data: a sua liderança política e existencial sobre nossa área.

Quando uma série de prisões, interrogatórios e até mesmo de invasões começaram ameaçar a classe teatral, Cacilda Becker, nossa líder absoluta, me pediu que a acompanhasse numa visita a um poderoso militar. Fiquei surpresa porque não tínhamos maior convívio nem intimidade.

Ela me disse textualmente que eu era a pessoa em quem mais confiava como testemunha do que se passaria naquele encontro. Eu lhe sugeri outros nomes. Ela insistiu.

Cacilda ocupava, graças à importância que sua vida lhe conferia, um cargo público —presidente da comissão estadual de teatro— num governo que, claramente, não era de esquerda, portanto, a posição dela era de magnitude como conciliadora.

A visita oficial seria à residência do comandante da Segunda Região Militar de São Paulo, na rua Honduras, no Jardim América, perto da casa de Maria Thereza Vargas, pesquisadora de teatro e amiga de Cacilda, aonde fui encontrá-la.

Embora com o encontro agendado, quem nos recebeu foi o filho daquela máxima figura do Exército. O general não estaria em casa.

Cacilda se posicionou: que abrandassem as perseguições, as prisões, a censura. Foi a fala de uma artista de absoluto protagonismo, de um absoluto prestigio, de uma real liderança. A resposta é que seu apelo seria levado ao general. E ponto final.

Ao sairmos dali, sentimos que nada viria em nosso auxílio.

O momento desesperado que estávamos vivendo dependia, claramente, da resistência mesma de nossa classe —na total liderança, sem trégua, de Cacilda Becker.

E, então ainda nesse maldito ano de 1969, acima de toda crise política, social, humana, nada nos esmagou, nos desmembrou, nos dilacerou mais do que o horror, a dor que foi a súbita, a trágica morte de Cacilda Becker, aos 48 anos de idade.

Por que Cacilda? Por que nossa líder? O que seria de nós sem ela? Até hoje, essa perda não é crível de tão dolorosamente absurda.

Há uma eternidade na sua figura —como mulher, como sublime atriz, como brasileira.

Cacilda vive!

Nesses seus históricos cem anos, Cacilda vive!

Para sempre, Cacilda Vive!

Este texto foi escrito por Fernanda Montenegro para ser lido em live do Teatro Oficina que homenageia Cacilda Becker nesta terça

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