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Índios levados a zoológico humano na Europa inspiram 'O Som do Rugido da Onça'

Micheliny Verunschk dá voz em novo livro a crianças raptadas e exibidas no século 19 na Alemanha, onde morreram

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Indio juri, em ilustração de 'Viagem ao Brasil', de Spix e Martius Edouard Fraipont/Divulgacao

São Paulo

Quando Maria Leopoldina, arquiduquesa da Áustria, veio ao Brasil para se casar com dom Pedro 1º, no começo do século 19, vieram com ela dois cientistas alemães, incumbidos pelo reino da Baviera de levar para Munique uma coleção de plantas, animais e minerais.

Mas o botânico Karl Friedrich Philipp von Martius e o biólogo Johann Baptist Ritter von Spix voltaram para casa três anos depois também com duas crianças indígenas. Eram oito delas no início da viagem de retorno, mas seis morreram.

A menina miranha e o menino juri, os sobreviventes que chegaram à Europa, foram mais tarde retratados em gravuras nos relatos de viagem da expedição de Spix e Martius. E é a partir dessas imagens que nasce o novo romance de Micheliny Verunschk, “O Som do Rugido da Onça”.

gravura colorida de uma índia criança
Retrato de índia miranha, litografia colorida à mão; Gravura presente no álbum 'Viagem ao Brasil', de Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, publicado em Munique, em 1823, e exposta na Coleção Brasiliana, no Itaú Cultural, em São Paulo - Edouard Fraipont/Divulgação

O livro entrelaça a história de Iñe-e, a garota miranha dada pelo pai aos brancos como um presente, e a de Josefa, uma mulher paraense dos tempos atuais que migra para São Paulo. Assim como Josefa no romance, é numa exposição na capital paulista que Verunschk se depara com os rostos das crianças indígenas raptadas.

“Fiquei intrigada, alguma coisa me chamava a atenção nelas”, diz a escritora, poeta finalista do prêmio Portugal Telecom em 2004 e vencedora do prêmio São Paulo de Literatura de 2015 com o romance "Nossa Teresa - Vida e Morte de uma Santa Suicida". “Não era só o fato de serem crianças que foram levadas como objeto de estudo, mas também o fato de não se ter muita coisa escrita sobre elas aqui no Brasil.”

Ela passou então a visitar obsessivamente a exposição, a Coleção Brasiliana do Itaú Cultural, na avenida Paulista. Foram inúmeras vezes entre 2017 e 2019. “Se os seguranças fossem olhar o histórico de filmagens do período achariam que eu estava tramando alguma coisa. E eu estava”, diz ela. Verunschk tramava escrever uma história para aquelas crianças.

mulher branca de cabelos grisalhos curtos usando blusa amarela
A escritora pernambucana Micheliny Verunschk - Renato Parada/Divulgação

Ela, que é formada em história, passou a realizar pesquisas sobre a expedição dos cientistas alemães, o retorno deles a Munique, a corte da Baviera, e sobre os grupos indígenas aos quais as crianças pertenciam em estudos de antropólogos. Sobre os juris, Verunschk diz ter encontrado muito pouco, ao contrário dos miranha, que vivem entre a Amazônia brasileira e a colombiana e sobre os quais bastante se sabe.

Mas lá pela metade da escrita do livro, ela conta, sentiu que não estava no caminho desejado. Escrevia um romance histórico clássico, sob a perspectiva dos europeus. Estava à procura de sua narradora e resolveu levar essa busca a uma experiência com ayahuasca.

Verunschk nunca havia provado o chá antes. “Sou uma pessoa muito certinha, bebo pouco e não fumo, sou muito concentrada e tenho o pé atrás com todas as coisas que me tirem disso”, diz. Mas decidiu tomar o alucinógeno com duas perguntas em mente –“quem é minha narradora e como eu posso me relacionar com ela”.

Foi então que aconteceu, segundo Verunschk, o ponto de virada na escrita do livro. Ela se perguntava como escreveria um livro sobre crianças do século 19, indígenas que não falavam o português ou o nheengatu, a língua franca, usada nos contatos entre brancos e índios, e que não falavam entre elas, já que eram de povos diferentes e inimigos. “Eu não sabia como me colocar no lugar desse outro. E o chá encontrou um dado pessoal.”

Aos cinco ou seis anos, Verunschk, que é de Arcoverde, no sertão pernambucano, se perdeu do pai no Recife, e passou um dia inteiro perdida. “Quando tomo o chá, essa memória volta, sob a perspectiva de uma criança perdida da família, fora de casa, num lugar estranho”, conta. Foi então que a escritora encontrou a propriedade que faltava para falar a partir do lugar de uma criança extraviada.

desenho colorido de índio criança com pintura toda em preto no meio do rosto em formato de retangulo
Retrato de índio juri, litografia colorida à mão. Gravura presente no álbum 'Viagem ao Brasil', de Johann Baptiste von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, publicado em Munique, em 1823, e exposta na Coleção Brasiliana, no Itaú Cultural, em São Paulo - Edouard Fraipont/Divulgação

“É por isso que este é meu livro mais autobiográfico.” Ela diz que nunca tinha falado sobre o acontecido da infância na terapia nem conversado sobre ele com outras pessoas, tendo apenas comentado com os pais uma vez, já adulta, e que era uma coisa que ficou no passado.

Segundo a autora, a experiência com a ayahuasca foi uma outra forma de saber, tão importante quanto os estudos e pesquisas feitas em artigos, teses e livros.

A falta de uma língua em comum entre os personagens do século 19 desperta o leitor de “O Som do Rugido da Onça” para as dificuldades de comunicação no período. Mas não só. Josefa também parece ter problemas em comunicar seus sentimentos falando português no Brasil do século 21.

“Este também é um livro sobre como falhamos em nos comunicar com o outro, sobre a importância da linguagem e como ela pode ser recuperada pela literatura”, diz a autora. “Os naturalistas falham miseravelmente. Enquanto as crianças estão ali sofrendo no navio porque estão sendo arrancadas, eles estão felizes. Na corte, enquanto a menina está apavorada, eles estão preocupados cada um com seu mundo.”

Para criar um livro no qual também pedras, rios e onças falam, Verunschk também se dedicou a estudar como narradores indígenas contam histórias e como se relacionam com o mundo dos encantados.

Estudou o conto Meu Tio, o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, que narra histórias de um caçador de onças, “A Queda do Céu”, de Davi Kopenawa, além de mitos e cosmologias de povos indígenas e como tais narrações são estruturadas. “É uma criação coletiva. Eu escrevi, mas não escrevi sozinha”, diz Verunschk.

Ela queria se cercar de cuidados para não repetir erros que a incomodam em escritos de outras pessoas brancas sobre o assunto. “Tive muito cuidado de não estereotipar e, para isso, tem de se estar muito sensível ao outro, a como as pessoas percebem o mundo e a como elas estão no mundo”, diz ela.

“Somos sempre o intruso, e essa intrusão também era interessante para mim como observadora e, depois, como narradora para colocar na paisagem narrativa os incômodos dessa relação. Somos o inimigo e é isso mesmo.”

Verunschk conta ter, em sua história familiar, antepassados indígenas, “como a maioria dos brasileiros”, mas que, também assim como para a maioria, eles foram apagados e deles só restaram parcos vestígios. “Como uma mulher branca, com os meus privilégios, não posso dizer que tenho uma ascendência indígena, não é um lugar que eu vá reinvindicar”, diz. ​

O Som do Rugido da Onça

  • Preço R$ 54,90 (168 págs.); R$ 37,90 ebook
  • Autoria Micheliny Verunschk
  • Editora Companhia das Letras
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