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No aniversário da Covid, veja como artistas e criadores se reinventaram com a crise

Atriz e técnico de som viraram cozinheiros, enquanto iluminadora de cena apostou em luminárias artesanais

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São Paulo

É importante não romantizar a transformação forçada pela qual trabalhadores da cultura foram obrigados a passar durante a pandemia. Afinal, a lógica dessas histórias é mais a da reinvenção por necessidade do que por desejo.

Privados de trabalhar por um vírus que não poupa aglomerações, uma DJ, uma atriz, um técnico de som, uma produtora de festas, uma iluminadora de cena e um profissional de estratégia cultural passaram a encontrar sentido —e dinheiro— em atividades nem sempre relacionadas às suas áreas de atuação originais.

Os recursos da Lei Aldir Blanc e a breve queda na curva de infecções em meados do ano passado permitiram que alguns pudessem exercer novamente, por um curto período, suas profissões originais. Mas essa alegria durou pouco, dado que o país voltou a ocupar o topo do ranking mundial da Covid, impossibilitando novamente as atividades culturais presenciais.

No aniversário da pandemia, os graus de satisfação destes profissionais —entre os 26 e os 51 anos— com seus novos trabalhos são variados. Afinal, eles trocaram carreiras estabelecidas e boas remunerações pelo incerto, inventando novas habilidades para se manterem sãos e pagarem os boletos.

De todo modo, como se lê nos relatos a seguir, suas falas não parecem vir do lugar do sofrimento, e sim do da criação.

Carol Badra, atriz e figurinista, 47

Quando era dona do espaço de teatro Os Fofos Encenam, em São Paulo, Carol Badra cozinhava um menu temático relacionado à peça que estava em cartaz no dia —a comida era vendida ao público no final do espetáculo.

O conhecimento do volume de ingredientes necessário para fazer quantidades de pratos seria útil durante a pandemia, quando a atriz e figurinista ficou sem poder trabalhar nas três produções nas quais estava envolvida.

Ela passou a cozinhar sopas, canjas, caldos e quibes com o amigo e também ator Rafael Maia, montando cardápios vendidos às quartas e sábados. Em dois meses, Badra conquistou uma carteira de cerca de 40 clientes, ela conta. O número de pedidos se manteve mais ou menos constante no decorrer do tempo, o que trouxe retorno financeiro e permitiu que seu marido —empregado no setor de TI— não ficasse sobrecarregado com as contas.

Com recursos da Lei Aldir Blanc, Badra voltou a ensaiar há pouco “Quase de Verdade”, uma adaptação do livro póstumo de Clarice Lispector para crianças. Mas a piora da pandemia nas últimas semanas a forçou a parar o trabalho. Ela tinha ainda a expectativa de retornar com o espetáculo “As Cangaceiras”, no Tuca, no primeiro semestre deste ano, o que parece pouco provável diante da alta dos casos de Covid.

Badra, contudo, afirma não ter crises com sua nova atividade profissional. “Eu me arrumo toda para cozinhar, ponho o dólmã, faço a minha peça ali, vou cantando. Quando pico a cebola, fico ali viajando naquela coisa da crocância da cebola, vou fazendo a minha viagem.”

Ligia Chaim, iluminadora de cena, 35

Ligia Chaim faria a luz de uma série de shows da cantora Maria Gadú quando a pandemia começou, forçando o cancelamento de toda a sua agenda. Depois de participar de uma série de lives sobre luz de cena e de passar um tempo com a filha, uma amiga pediu a ela que produzisse um novo exemplar de uma luminária que havia feito para ela há alguns anos.

Assim surgiu um negócio de produção de luminárias artesanais, o Lumi Gami, com peças que lembram flores de origami.

As luminárias —com preços entre R$ 130 e R$ 300— são confeccionadas inteiramente por Chaim, e cada uma leva cerca de um dia para ficar pronta. Sua clientela, inicialmente restrita ao grupo de amigos, se expandiu depois que um de seus produtos compôs o cenário de uma live de Caetano Veloso em agosto.

“A luz de uma casa pode se transformar apenas com uma luminária, sem ter que trocar tudo. Com uma luz no cantinho, de alguma maneira, você já faz toda uma ambiência”, afirma ela. Chaim tem 19 anos de experiência em iluminação de cena, cinco dos quais como iluminadora da banda BaianaSystem.

Usando recursos da Lei Aldir Blanc, Chaim também criou uma oficina de iluminação para crianças, deu aulas online e foi chamada para dirigir, virtualmente, a luz de uma peça de teatro. Ela conta não ter investido mais nos cursos online porque se sente um pouco desanimada. “Não consigo passar uma esperança que eu já não vejo, não consigo pensar que vou ganhar dinheiro sem esperança.”

Marina Dias, DJ e modelo, 45

Depois de tocar nas principais casas noturnas do Brasil e de investir por anos em sua carreira de DJ, a modelo Marina Dias estava prestes a ser chamada para discotecar fora do Brasil quando a pandemia começou. Sem poder trocar energia com a pista de dança, ela conta ter transformado seus hobbies em trabalho.

Passou a ajudar a amiga Luma Assis, uma muralista, a pintar grandes painéis de motivos gráficos, tropicais e botânicos, um próximo ao Campo de Marte, em São Paulo, e outros para clientes privados. Foi uma maneira de exercitar em outro formato os pequenos desenhos que faz em papel, ela diz, alguns dos quais chegou a vender nos primeiros tempos do isolamento social.

Para fechar as contas no fim do mês, aprendeu também a fazer pequenos consertos em apartamentos e pintou três casas de amigos. Embora o retorno financeiro dos novos trabalhos não chegue perto do alto cachê que tinha como DJ de vários estilos de música eletrônica, ela relata ter orgulho de tudo o que fez.

“Além de muralistas, pedreiras. Fiquei me sentindo muito berlinense fazendo reforma no apartamento, sabe? É muito reconfortante saber que você segura a sua bronca se você precisar”, diz. “Adoraria que alguém desse uma empena gigante para a gente pintar [um mural]."

Kiko Carbone, técnico de som e dono do estúdio Loop, 51

Quando montou um negócio de molhos para massa depois de ficar sem trabalho durante a pandemia, o técnico de som Kiko Carbone deu continuidade à história de sua família. Sua avó italiana, quando tinha só oito anos de idade, teve de aprender a cozinhar durante a epidemia de gripe espanhola de 1918 para alimentar os pais que haviam adoecido.

Ao se mudar da Itália para o Brasil, em 1956, ela “pegou todos os seus conhecimentos gastronômicos e os adaptou aos ingredientes encontrados naquele momento, em São Paulo, reproduzindo os sabores da terra natal”, ele conta. Hoje, saem da cozinha —e das próprias mãos— de Carbone os molhos sugo, putanesca e pesto, além de antepastos e sobremesas.

Carbone viu as atividades de seu negócio principal e também dos paralelos virarem fumaça. Seu estúdio Loop, que recebe em São Paulo cerca de 200 ensaios por mês de músicos renomados há 20 anos, ficou paralisado. Além disso, ele fazia a sonorização de eventos corporativos e de shows em casas noturnas, o que garantia um fluxo de trabalho constante.

“Não tenho carteira de trabalho, sempre fui empreendedor e prestador de serviço”, ele diz, acrescentando que montou o negócio dos molhos, chamado Biasini, em apenas uma semana, com a ajuda de uma amiga que desenhou a arte das etiquetas. “Não é que deu super certo, a gente ainda está com dificuldades, obviamente, mas isso ajudou, se não teríamos quebrado.”

Marcela Ramos, artista e produtora cultural independente, 26

“Ou eu faço alguma coisa, ou eu enlouqueço.” O pensamento decisivo da artista e gestora cultural independente Marcela Ramos, depois de alguns meses isolada e sem trabalho no início da pandemia, a levou a montar um grupo com duas amigas para elaborar e inscrever projetos culturais em editais.

Sua mudança inesperada para uma área mais burocrática da cultura se deu depois que a agenda das festas que produzia na cidade de São Paulo e em outros estados do país foi cancelada. Ramos, conhecida no meio como Mafalda, cuida de noites importantes como Batekoo, Sangra Muta e Mamba Negra, baladas que movimentam o underground paulistano há anos com uma mistura de música e ativismo.

Além de enveredar pelos editais, Mafalda produziu e dirigiu um curta para o Instituto Criar e trabalhou na campanha de Guilherme Boulos, colunista deste jornal, para a prefeitura paulistana.

Ela afirma ganhar consideravelmente menos do que antes da pandemia, mas conseguir pagar as contas e levar uma vida “agradável até”.

Depois de um ano, como encara seu novo trabalho? “Teve uma questão de reaprender a pensar minha profissão. Foi um saldo, eu não diria positivo, mas interessante. Positivo acho que não tem como achar nada nesse momento, né? É impossível olhar de maneira positiva 300 mil mortes.”

Caio Spessoto, inteligência e estratégia cultural, 37

Uma das festas online mais inovadoras durante a pandemia foi uma edição da paulistana Gop Tun que reproduziu, no ambiente virtual, as instalações da Fabriketa, em São Paulo, onde a balada de música eletrônica normalmente ocorre. Era possível explorar o galpão do Brás em 3D, de forma imersiva, num formato que fugia dos quadradinhos do Zoom, a plataforma mais usada pelos produtores naquele momento.

Um dos responsáveis por essa novidade foi Caio Spessoto, que trabalhava na direção criativa da festa e migrou a experiência presencial da balada para a internet. A pandemia fez com que ele tivesse de parar e pensar como a sua carreira de quase 20 anos como produtor cultural —incluindo passagens pelo Tim Festival e pela MTV— poderia migrar para o digital.

Mesmo assim, ele conta, foi preciso abrir uma nova frente profissional para que pudesse seguir fechando o mês com bons rendimentos financeiros. Ele então foi contratado pela Sharp, uma agência de inteligência cultural, que embasa e sistematiza projetos artísticos, e se diz realizado por poder se concentrar no que faz melhor, sem acumular uma série de funções.

“Sinto saudade dos eventos. Minha carreira sempre foi construída dentro desse ambiente de sentir o público e ver a reação das pessoas de tudo o que você construiu”, ele afirma.

Spessoto diz acreditar que, quando as festas voltarem, a “vivência offline” vai ser parte de um todo que pode se desdobrar também em outras plataformas.

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