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Novato Guido Arosa escreve como se na antessala da escrita

Romance ainda inédito, 'Terapia do Abuso' mostra desejo do narrador de encontrar um pedófilo para se vingar dele

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Uma escrita na antessala da escrita —ou na sala de espera da sessão de terapia, de psicanálise, ou no momento anterior ao de se ajoelhar no confessionário (ou para o sexo oral entre homens)—, assim se pode descrever “Terapia do Abuso”, curto romance ainda inédito do novato Guido Arosa, carioca de 30 anos.

O texto, estranho de início, forte, apresenta uma técnica de narrar em camadas sobrepostas de sentido e de elementos narrativos. O narrador, que também é escritor, se explica, em momentos quase ensaísticos sobre a arte de escrever: “Jacques Derrida – ‘Ninguém ousará assumir o direito, porque ninguém o terá nunca, de dizer que esses três eus (autor, narrador, personagem) são o mesmo (...)”.

Homem posa para foto com livro sobre a mesa
Guido Arosa, autor de 'Terapia do Abuso' - Reprodução/Instagram/@guidoarosa


No enredo, numa atmosfera de suspense, um narrador em primeira pessoa, molestado aos 12 anos de idade por um pedófilo, busca por este homem que era seu psicanalista na época e que abusava dele nas sessões de terapia.

A tensão que conduz a narrativa é movida pelo desejo do narrador de encontrar o pedófilo para denunciá-lo e se vingar dele —ou matá-lo, ou destruí-lo—, ainda que quase duas décadas já tenham se passado desde o evento.

Uma escrita na antessala da escrita, não como defeito, mas como processo de quem se prepara para dizer, de quem ensaia para dizer, de quem, com esse discurso arrumado, arranjado, pré-pensado, espera livrar-se do confronto, espera convencer (o terapeuta) e se convencer de que, sim, apresentou-se
como apresentável.

Apresentou-se como apresentável à terapeuta e à sua própria consciência, seu superego, ainda que sincera e cruamente, no limite entre a ficção (a mentira) e a terapia (a camuflagem): “Sou um escritor”, diz o narrador. “Escrevi um livro e continuo escrevendo outros onde digo que sou um homossexual abusado na infância por meu psicanalista e que, adulto [...], acredito na minha morte certa pela Aids, mas ao escrever finjo que nem tudo é tão verdade [...], uma forma de me esquivar um pouco da vergonha.”

Apresentar-se como apresentável, por meio de uma fala qualquer coerente a ponto de livrar o paciente-narrador do terapeuta, da terapia e do trauma (e da própria escrita?).

Nada mais incômodo (em certo sentido) do que uma sessão de terapia. Nada mais incômodo (em certo sentido) do que escrever literatura, essa espécie de suicídio.

O trabalho de detetive do narrador, que procura o abusador criminoso, corre em paralelo ao do escritor que busca elaborar a experiência-limite, o sofrimento psíquico que carrega desde aquele episódio de infância, mas não sem julgamento moral (a vergonha, a culpa) do abuso e da própria condição de quem exerce clandestinamente sua sexualidade.

O mais interessante talvez seja o fato de que, desta escrita na antessala, tudo vai aos poucos virando sala e se revelando: o set terapêutico que se desdobra em quarto do jovem narrador na casa dos pais (onde ele recebe, escondido, homens para transas fugazes), que, por sua vez, se transforma na “sala” do “aplicativo de pegação” ou nas cabines de trepação entre homens anônimos, nos submundos do universo gay clandestino.

No prefácio, João Camillo Penna, crítico literário e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, destaca esse aspecto importante do ambiente-sala e inconsciente-consciente no livro. E nós, leitores, acompanhamos a narrativa como juízes-voyeurs do abuso e da abertura das salas.

É o segundo livro de Guido Arosa, já premiado em 2019 pelo romance “O Complexo Melancólico” (editora Garamond), com o prêmio Cesgranrio de autor fluminense inédito. Destaque também em “Terapia do Abuso” para o pedido de passagem (para apresentar-se apresentável?) do autor novato: as inúmeras epígrafes que introduzem os capítulos.

Trata-se de uma bizarra mistura de falas literárias (ou não) de outros, que vão desde Cornélio Penna e Clarice Lispector até o cantor Fagner e o animador de auditório Silvio Santos. Desnecessárias citações, pois o livro intenso se sustenta sozinho, embora também sejam reveladoras do grau de fragmentação dessas subjetividades juvenis ultracontemporâneas.

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