“Fui barbaramente torturado. E eu tinha só 19 anos.” O depoimento de um dos “arrependidos” é seguido pela canção “Marcas do Que se Foi”, usada como propaganda da ditadura, com cenas de jovens felizes cantando e dançando em torno da fogueira.
O contraste é brutal. Como dizem os diretores, Ricardo Calil e Armando Antenore, “Arrependidos” é um documentário incômodo, doloroso, tanto para a esquerda quanto para a direita. E para quem se sensibiliza com as tragédias pessoais e coletivas. Ninguém sai incólume.
Os personagens retratados, alguns deles entrevistados, fazem parte de uma história pouco conhecida e documentada, que trata dos processos de mea-culpa de alguns militantes da luta armada no início dos anos 1970, os mais sangrentos da repressão militar.
O filme, que é exibido agora no festival É Tudo Verdade, é incômodo para a esquerda, porque revela como alguns de seus militantes mais radicais cederam a pressões internas e externas e optaram pela autocrítica.
Incômodo também para a direita, por razões mais explícitas, já que “Arrependidos” radiografa o esquema de tortura e coação que levou esses guerrilheiros a fazerem confissões públicas e humilhantes.
Segundo os diretores, estava claro que não era caso de julgar ninguém. Se existe um vilão no filme, é a ditadura e a tortura, salientam. “A gente não queria submeter esses personagens a um novo cancelamento histórico”, diz Calil.
Curiosamente, o filme não partiu do momento atual, pautado pela perigosa aproximação com o autoritarismo. Começou a ser pensado em 2014, antes do governo Temer, em boa parte inspirado pelo livro “O Terror Renegado”, de Alessandra Gasparotto.
Antenore conta que, à medida que o documentário foi sendo finalizado, “a gente foi surpreendido pelo Brasil”. E Calil completa que “o filme se atualizou, se tornou mais urgente, mas não foi o filme que buscou o presente, e sim o país que voltou para o passado”.
Feito com rigorosa objetividade —os diretores vêm do jornalismo—, com planos fixos, narrativa linear e trilha sonora minimalista, que evoca o som das portas de prisão batendo, “Arrependidos” alterna depoimentos com as propagandas ufanistas da época, numa edição sensível e inteligente, a cargo de Jordana Berg. Vemos as retratações públicas, em que os depoentes parecem à vontade.
Evidente que a impressão é falsa. Eram o combustível das máquinas de mentiras do regime. É nessas imagens que se destaca a figura trágica de Massafumi Yoshinaga, que vivia na clandestinidade, se entregou e anos depois se matou.
Como parte do trabalho precioso de pesquisa, há ainda documentos e cartas que costuram a narrativa, alguns deles lidos pelos próprios presos.
A ironia é que tanto as propagandas, quanto o processo das confissões ou viradas de posição ideológica, se assemelham ao realismo soviético e seus forçados mea-culpa.
Ao usar a comunicação para veicular seus ideais, tanto oficialmente quanto por meio da coerção, a ditadura imitava o propalado inimigo. Mas o que chama a atenção é, como dizem Calil e Antenore, a complexa ambivalência de cada suposto arrependido.
“Embora estejam agrupadas, são pessoas com trajetórias muito singulares. Para nós é importante que sejam vistas como indivíduos”, afirma Calil. Já Antenore ressalta que “só um renegou de fato a esquerda, os demais renegaram a luta armada”.
O relato mais pungente é o de Graça Lago, filha de Mário Lago e viúva de Manuel Henrique Ferreira, que, anos depois do arrependimento forçado, arriscou a própria vida ao mandar uma carta para dom Paulo Evaristo Arns denunciando o esquema sinistro da propaganda extra-oficial do regime militar, arrancado à força nos porões.
Ela é a única que traz o assunto para a realidade atual, com ênfase corajosa. “Não acabou”, lembrando a tortura ainda cometida em prisões e delegacias. E, indiretamente, à sombra permanente do regime de exceção que paira desde que Bolsonaro foi eleito.
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