Descrição de chapéu União Europeia

Quem é o maestro que saiu de Mogi das Cruzes para reger orquestra na Europa

Aos 33 anos, Luiz Guilherme de Godoy, expoente de sua geração, diz que ter sucesso na carreira não é superar o racismo

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São Paulo

Luiz Guilherme de Godoy é dos músicos brasileiros mais bem-sucedidos de sua geração. Aos 33 anos, é um dos maestros da Ópera Estatal de Hamburgo e foi nomeado diretor artístico dos Meninos Cantores de Hamburgo, um dos grupos vocais mais antigos do mundo.

Radicado na Europa desde 2013, ele já foi preparador do Coro da Ópera de Viena e mestre de capela, isto é, regente titular, do mesmo Meninos Cantores de Viena. O currículo impressiona e as conquistas surpreendem ainda mais quando se conhece sua trajetória.

Nascido em Mogi das Cruzes numa família modesta –“negro e periférico”, como ele diz–, Godoy afirma que sua formação está vinculada ao acesso a uma educação musical “de absoluta qualidade”, pública e gratuita. “Estudar em instituições de ponta foi o que me fez estar onde estou hoje.”

Aos cinco anos, ele se apaixonou pelo canto coral e passou a estudar música num projeto social. Mais tarde, ingressou na Escola Municipal de Música de São Paulo, tendo aulas com o pianista e professor Renato Figueiredo. “Muito cedo ele me mostrou que aquilo que oferecia para nós era importante para ele. Isso reverberava em mim e eu me sentia certo do esforço que fazia”, lembra.

Órfão de pai, à época sua mãe fez um empréstimo para comprar um piano, pois a escola exigia que o aluno tivesse seu próprio instrumento. Aos 13 anos, tomava o trem sozinho algumas vezes por semana de Mogi até o centro de São Paulo. “Não me lembro de ser cansativo; pelo contrário, ia com a maior felicidade do mundo.”

O próximo passo foi cursar piano na Universidade de São Paulo, a USP –encarava o instrumento como uma ferramenta para chegar ao que realmente o interessava, a regência.

Na universidade, cursos e intercâmbios abriram as portas para o mundo. Em 2010, Godoy foi à Áustria a convite do Coro da Universidade de Viena, para ministrar um workshop sobre música coral brasileira. Fez mestrado em Portugal e na Alemanha, com bolsa da União Europeia. Finalmente, em 2013, ingressou no curso de regência da Universidade de Música e Artes Performáticas de Viena.

Os resultados vieram rápido e, em 2017, mesmo ano em que assumia os Meninos Cantores de Viena, conquistava o Erwin Ortner, mais importante prêmio de música coral na Áustria.

Mas logo ele se impôs novos desafios —queria trabalhar mais com orquestra e criar uma escola coral a partir do zero, unindo as experiências da infância com a bagagem europeia. Tudo isso foi possível ao se mudar para Hamburgo, uma vez que foi contratado justamente para construir a estrutura de coros infantojuvenis, além de assumir as récitas de difusão da orquestra da Ópera Estatal.

Godoy está longe do estereótipo do músico clássico que vive alheio às questões contemporâneas. Já na USP, diz, pôde perceber como a música erudita era vinculada a certo elitismo. Também afirma ter enfrentado o racismo, velado ou aberto, em diferentes situações. “Seria uma mentira dizer que nunca passei por racismo ou xenofobia na Europa. Mas aqui sinto que, quando consigo mostrar meu trabalho, a situação é superada.”

Da Alemanha, Godoy auxilia artisticamente o Núcleo Voz Negra, da Ocupação Cultural Jeholú, de São Paulo. Acha muito importante o “aquilombamento” –processos voltados para dentro da comunidade negra– para “a união de forças a partir da reabilitação de uma identidade coletiva frequentemente oprimida”.

Mas, ao mesmo tempo, acredita que é necessário haver uma projeção exterior. “Minha percepção enquanto artista negro bem-sucedido é que ter sucesso na carreira não é superação do racismo, pois ele continua a nos atravessar. No entanto, temos que ocupar espaços nos quais possamos ter representatividade.”

Ele lembra uma história recente e “triste demais, angustiante”. No ano passado, num debate online, conheceu o professor de técnica vocal Fábio Miguel, da Unesp, docente negro do Instituto de Artes. No início de fevereiro, Miguel morreu prematuramente depois de um ataque cardíaco.

“Sempre que dava aulas para alunos da Unesp ouvia ‘sou aluno do fulano, do sicrano’. Depois da morte do Fabio, muitos vieram me dizer que também tinham sido alunos dele. Por que nunca o mencionaram? Veja, não são pessoas mau caráter, o que acontece é que o racismo estrutural nos atravessa. Esse fato ilustra a tal invisibilização da qual sempre falamos.”

A partir da temporada de 2021 e 2022, Godoy passa a atuar também como assistente do prestigiado maestro Kent Nagano, titular da Filarmônica de Hamburgo. Comandará as récitas de difusão musical, além de coordenar os coros infantojuvenis e reger os Meninos Cantores de Hamburgo. “É uma realidade próxima da que eu tinha em Viena, ou seja, de trabalhar incansavelmente.”

Ele diz estar feliz com tantas conquistas, mas que adoraria atuar mais no Brasil. E conta que não se deixa deslumbrar. “Costumo dizer que a música é a segunda coisa mais importante da minha vida. A primeira são os seres humanos com quem tenho a felicidade de dividir a existência. A música não é fim, é meio para que a gente se humanize. Espero poder oferecer aos jovens que estão iniciando uma experiência tão boa e estimulante quanto a que eu tive.”

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