Descrição de chapéu
Andreza Delgado

Racismo no BBB 21 envolvendo cabelos de João não é espetáculo

Num país em que 54% da população se identifica como negra, o mínimo que se espera é não regularizar seu sofrimento na TV

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Andreza Delgado

Produtora de conteúdo, é uma das idealizadoras da PerifaCon. Escreve sobre cultura pop e nerd

Faz pelo menos quatro dias que os participantes do Big Brother Brasil e a internet, digamos, discutem uma situação protagonizada pelo professor João Luiz e o sertanejo Rodolffo. Nele, o cantor havia comparado o cabelo do professor com o de uma peruca que fazia parte da fantasia de homem pré-histórico na dinâmica do chamado castigo do monstro.

O cantor sertanejo Rodolffo veste fantasia de homem pré-histórico no BBB 21; ele afirmou ao participante João Luiz que a peruca da fantasia parecia com o cabelo do professor - Instagram/BBB

"Estou cansado de ouvir isso. Não é só aqui dentro, é lá fora também", desabafou João.

Eu sei, João, também estou cansada. Uma das primeiras experimentações racistas que um ser humano que se identifica como negro vai viver é na sua infância, e ela possivelmente estará ligada ao seu cabelo. A professora Nilma Lino Gomes apresenta a tese de que o ambiente escolar é um dos primeiros lugares dessa violência racista para com o cabelo no artigo "Trajetórias Escolares, Corpo Negro e Cabelo Crespo".

“Não adianta vir com discurso de que você não teve a intenção de fazer”, continuou João. É algo que vale destacar da situação que se estendeu para a noite desta segunda durante o programa ao vivo. Depois de confrontar Rodolffo, João parecia que já sabia a sequência que viria para amenizar a situação.

Ali se desenhou uma narrativa que é quase um fenômeno nas desculpas de pessoas que protagonizam situações de violência simbólica racial. Ela funciona da seguinte forma –dizer que não se teve intenção, como se ter ou não pudesse amenizar a situação, como se ter ou não o propósito de ser racista fosse o problema.

Como se a construção de agressões como essas não estivesse ligada à história racista deste país e a como lidamos com a aparência e principalmente os cabelos de pessoas negras por aqui. É como se a dor e o choro de João fossem construídos em cima de nada, por mero capricho. É como se nessas justificativas deixássemos passar a história racista de miscigenação, numa tentativa de aniquilar os traços negros da população.

O peso da história que não apaga a instituição branquitude, que opera a todo momento para ditar como a brancura é o único padrão de beleza possível, vai quase esvaindo o peso cultural deste país que pregou por séculos o ódio próprio para os negros.

Por último, e quase me esqueço, tudo isso aconteceu na emissora que por anos perpetuou um racismo recreativo por meio de representações caricatas de negros que se apresentavam como humorísticas. Era o caso da pedinte Adelaide, no antigo Zorra Total –que o humorista Rodrigo Sant'Anna encarnava com um blackface, quando uma pessoa branca pinta o corpo e o rosto de preto.

A situação lamentável de testemunhar João Luiz chorando em rede nacional nos serve de alerta de que a violência direcionada a negros não se desenha apenas nos alarmantes dados de extermínio dos mapas da violência urbana ou nas prisões equivocadas baseadas em fotos e em achismo vistos em tantos relatos de prisões de afrodescendentes.

Além disso, a violência não se encerra nos xingamentos de primata, que para alguns brasileiros parece ser o máximo da materialização do que pode ser de fato uma atitude discriminatória baseada na cor da pele. Ao contrário, essas atitudes também moram nas piadas e comentários que violentam a aparência e a autoestima de nós, negros.

A verdade é que me faltaria espaço neste texto para falar sobre todas as tecnologias criadas e herdadas de outras gerações para cometer atrocidades contra a população negra.

Mas vale reiterar que violência racial não é entretenimento. Não podemos aceitar que um apresentador chame de “desentendimento” um caso que não só atinge um participante, mas também quem o vê. Isso transmite uma péssima ideia de que determinadas situações podem ser amenizadas em vez de punidas. Ficamos com a sensação de que existem outras interpretações para a situação que não seja o racismo –que talvez possa existir um equívoco ou exagero da parte de João Luiz.

Não se deve normalizar esse episódio e muito menos ditar a reação que o professor deveria ter tido, sendo “mais didático” ou conversando em particular com Rodolffo. Isso só mostra como culturalmente existe um lugar confortável para continuar violentando as vítimas de racismo para que elas se comportem a ponto de não denunciar ou questionar se foram vítimas ou não.

Num país que aponta que 54% da sua população se identifica como negra, o mínimo que se espera, além de reparação e justiça, é não regularizar gente preta em grande sofrimento na televisão como alguma categoria de entretenimento. Porque não é. É condenável, é chocante e detestável. E como disse Babu Santana, participante da edição anterior do programa, "o black é a coroa”.

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