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Artes Cênicas

'A Melhor Versão' é outra peça a criticar a família conservadora brasileira

Motivo é bastante comum na ficção do país, mas parece fácil demais para o que estamos vivendo

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A Melhor Versão

Mais que uma peça de teatro para as telas, “A Melhor Versão” é um híbrido entre teatro e audiovisual. A equipe de criação simboliza esse trânsito entre as duas linguagens.

cena de espetáculo
Michel Blois em foto de divulgação do espetáculo virtual 'A Melhor Versão' - Pablo Henriques/Divulgação

Julia Spadaccini, a autora, escreve há tempos para o teatro, o cinema e também para a TV. Já a direção está a cargo da dupla Daniel Herz e Luiz Felipe Sá. O primeiro é fundador e diretor da Cia. Atores de Laura, importante grupo de teatro do Rio de Janeiro. Sá é diretor de cinema. Não é por acaso, portanto, que podemos chamar a obra tanto de teatro virtual, como de peça-filme, ou mesmo de um média-metragem com atmosfera teatral.

A interação entre as linguagens funciona bem, tudo se integra de forma dinâmica e, mais ainda, o amálgama entre teatro e vídeo ajuda a ecoar os assuntos da obra.

“A Melhor Versão” é sobre uma família que vive uma espécie de teatro cotidiano, recalcando desejos íntimos e encenando comportamentos sociais aceitos, numa “enganação conjunta” que dura décadas.

Não por acaso, o filme acontece num teatro vazio —tudo foi gravado na Cidade das Artes, no Rio de Janeiro—, e não numa locação ou num ambiente cenográfico montado para representar o apartamento de classe média da família formada por Osmarinho, Gilda e Gilsinho.

cena de espetáculo
Ana Paula Secco, Armando Babaioff e Michel Blois em foto de divulgação do espetáculo virtual 'A Melhor Versão' - Pablo Henriques/Divulgação

A atmosfera cênica que envolve a obra lembra aquela consideração filosófica clássica eternizada por Shakespeare na fórmula “o mundo é um palco”. Afinal, boa parte da nossa sociabilidade considerada real, digamos, parece ser um tipo de fantasia encenada —versões de nós mesmos para melhor se adequar a esse grande teatro-mundo.

Mas a presença teatral também serve, em “A Melhor Versão”, para investigar os mecanismos dessa ilusão. A câmera da peça não é a típica câmera voyeur do cinema industrial, que enquadra o acontecimento como se estivesse ali de modo mágico, apagando a sua existência técnica.

Nesta peça-filme, ela faz parte de um processo aberto de representação, em que os refletores e a maquinaria estão visíveis, e são manipulados dentro do plano do vídeo. Vemos uma cena que o tempo todo mostra que mostra. Como se, na verdade, a obra apresentasse um grupo de atores num laboratório social, investigando e estudando aquelas personagens, e não só as encarnando.

Em alguns momentos, o tom narrativo do texto, quase uma crônica lida em cena, também contribui para esse gesto crítico, criando distância entre ator e personagem —apesar de essa transposição da literatura para o teatro (ou para o vídeo) ser um pouco truncada e às vezes excessivamente ilustrativa, sem nada daquela tensão dialética entre ação e narração que as tradições épicas do teatro desenvolveram no século 20.

Seja como for, a estrutura da obra apresenta um exame crítico de bom rendimento sobre a subjetividade e os labirintos da moral social. Só que há também uma sensação de déjà-vu na apresentação meio empoeirada desta família tipicamente conservadora e moralista, que vive recalcando desejos ou se valendo de uma espantosa hipocrisia para dar vazão a eles.

Não se trata apenas de um motivo bastante comum na ficção brasileira, mas uma mirada que também parece vir perdendo sua acuidade crítica. Esse estereótipo da família de classe média conservadora mumificada pelo ressentimento, e que, de acordo com o desenvolvimento da obra, teria sido novamente energizada por uma dinâmica de fake news obscuras, parece ser uma hipótese um pouco fácil e superficial para o que estamos vivendo.

Simplificada dessa forma, a visão ganha um aspecto de ilusão compensatória. Afinal, é fácil e confortável acreditar que o obscurantismo atual é modulado por uma fração de velhos moralistas recalcados à beira da morte. Mas será só isso?

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