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'Decamerão' da Covid usa moldura da Idade Média para falar de hoje

Margaret Atwood, Mia Couto e Julián Fuks se inspiram em Boccaccio para escrever sobre a quarentena

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O Projeto Decamerão

  • Preço R$ 79,90 (336 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Vários
  • Editora Rocco

No “Decamerão”, de Giovanni Boccaccio, dez jovens de Florença se refugiam numa propriedade de campo para escapar da peste bubônica que assolou a cidade toscana no ano de 1348. Ali, ao longo de dez jornadas —este o significado do título original em latim, “Decameron”—, cada um deles conta dez das cem histórias que compõem esse clássico da literatura italiana.

Em “O Projeto Decamerão”, os editores do jornal The New York Times convidaram 29 escritores, em sua maioria americanos ou radicados nos Estados Unidos, a escreverem narrativas de ficção a partir da experiência da quarentena durante a pandemia de Covid-19.

Apesar de o nome da antologia ser inspirado no “Decamerão”, as semelhanças entre os dois livros se limitam à moldura. As formas e as cores dos relatos contemporâneos não guardam maior relação com os episódios –entre galantes e picantes, com boas doses de anticlericalismo– da obra de Boccaccio, que tem um pé na Idade Média e outro no humanismo renascentista.

O único conto que faz referência explícita ao modelo clássico é “Griselda, a Impaciente”, de Margaret Atwood. O nome da personagem é extraído da última novela do “Decamerão”, em que a heroína de classe subalterna se submete às arbitrariedades do marido marquês, que deseja testar sua devoção.

Mas a escritora canadense reescreve a história a contrapelo e com laivos feministas —no conto, há duas Griseldas gêmeas, a Paciente e a Impaciente, sendo que esta última arma uma sangrenta vingança contra o abusivo e esnobe pretendente da irmã.

Detalhe importante –quem conta a história de Griselda é um extraterrestre enviado a nosso planeta pandêmico como “parte de um pacote de auxílio a crises intergalácticas”. Se o argumento é de ficção científica, o tom é de humor nonsense —não tão distante de Boccaccio—, oferecendo aos terráqueos um espelho de suas mazelas.

Em outras narrativas de “O Projeto Decamerão”, essa associação entre humor negro e questões contemporâneas como assédio sexual, racismo, fundamentalismo também se faz presente, pondo a pandemia em plano secundário.

pintura em aquarela
'Caterina e Ricciardo', desenho do artista italiano Enrico Paulucci delle Roncole de 1967 inspirado pela quarta novela do quinto dia de "Decamerão", de Giovanni Boccaccio - Comune Certaldo/Google Arts and Culture/Reprodução

Em “Garotas Prudentes”, da californiana Rivers Solomon, uma jovem negra vive com a tia testemunha de Jeová que justifica a doença como praga divina –“nada vai impedir o Armagedom”– e trabalha como babá para o diretor da penitenciária em que sua mãe cumpre pena.

Quando, confiante de que ninguém se daria conta de um crime durante a pandemia, o patrão assassina a mulher, que o acusa de cobiçar a babá, a sensata jovem realiza seu duplo Armagedom –contra a religião e o abusador.

Mais melancólico, mas também com muita ironia, John Wray assina o melhor conto do volume, “Barcelona: Cidade Aberta”, cujo vadio protagonista encontra na pandemia seu elemento. Com a cidade espanhola paralisada, todos se tornam desocupados como ele, que agora exerce sem culpa o singelo trambique de alugar seus cães para quem quiser passear e, assim, burlar o isolamento.

O “cafetão de calçada” criado por Wray, porém, se apaixona por uma das clientes e aponta para outra vertente das narrativas de “O Projeto Decamerão” —as dores e amores do confinamento.

O tema é explorado de forma pungente pelo irlandês Colm Tóibín —cujo casal gay contempla a felicidade libertária de outros casais homoafetivos, contrastando isso com seu pálido cotidiano de quarentenados—, ou pelo brasileiro Julián Fuks —que aborda os efeitos da “inexistência do tempo” no único texto do livro com forte caráter político, legítima reação à performance também única do Brasil no enfrentamento da epidemia.

De modo geral, porém, as narrativas trazem mais as marcas da obra anterior de seus autores do que da pandemia em si –casos da marroquina Leila Slimani (o caráter explosivo das questões identitárias) e do moçambicano Mia Couto (a indiferença humanitária endêmica).

Ou, ainda, do israelense Etgar Keret, cujo viés kafkiano aparece em "Do Lado de Fora". Nesse conto, em que a polícia tem de desalojar de casa os obstinados seguidores das restrições sanitárias, o mundo às avessas de Keret é não um pesadelo da razão, como nas parábolas de Kafka, mas uma seara de suposta sensatez, que logo se dissolve na crueldade cotidiana.

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