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William Pereira

Depoimento: Além de atriz referência, Eva Wilma tinha uma doçura rara

Disciplinadíssima, ela conseguia interpretar monólogos imensos de espetáculos que havia feito há mais de 30 anos

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William Pereira

Diretor, cenógrafo e figurinista. Representante da vanguarda teatral dos anos 1980, ele foi um dos fundadores do grupo Barca de Dionisos.

“Melancólica paz nos traz essa manhã.” É assim que Shakespeare termina "Romeu e Julieta" na fala do príncipe que lamenta a morte dos dois amantes. É a sensação que me domina ao receber a notícia da morte da querida Eva Wilma. Que mulher extraordinária que todos nós perdemos.

Ainda criança, conheci Eva Wilma em novelas pela televisão, no interior do Brasil. Uma cena antológica que recordo: uma mulher linda correndo à beira-mar na abertura da novela "Mulheres de Areia".

Mal poderia imaginar que muitos anos depois me tornaria um profissional de teatro e a dirigiria justamente em um espetáculo autobiográfico, "Primeira Pessoa", escrito por sua grande amiga Edla van Steen, em que ela revisitava os principais momentos de sua vida e carreira.

Vivinha, como era carinhosamente chamada pelos amigos, além da atriz referencial da cena brasileira era também de uma doçura e de uma delicadeza que poucas vezes encontrei no teatro.

Começou a carreira como bailarina, aluna de Maria Olenewa. Abandonou a dança para participar da montagem de "Uma Mulher e Dois Palhaços", no Teatro de Arena. Segundo ela, uma das decisões mais difíceis de sua vida, abandonar a dança pelo teatro.

Uma das atrizes mais deslumbrantes de sua época, fascinou Alfred Hitchcock, que a convidou para fazer teste em Hollywood para um de seus filmes. Alternava a residência entre São Paulo e Rio de Janeiro, sempre em razão dos compromissos no teatro e na televisão. E foram muitos.

Além de protagonizar várias novelas, ela interpretou, no teatro, Vladimir, da peça "Esperando Godot", de Samuel Beckett, em um elenco totalmente feminino dirigido por Antunes Filho. Foi Blanche Dubois de "Um Bonde Chamado Desejo", de Tennessee Williams; Branca Dias, de "O Santo Inquérito", de Dias Gomes; a Mãe, em "Querida Mamãe", de Maria Adelaide Amaral, e muitos outros como atriz e produtora impecável.

duas mulheres abraçadas viradas para frente e um castiçal ao fundo
Eva Wilma e Eliane Giardini em cena da peça teatral "Querida Mamãe", em 1996 - Beti Niemeyer/Divulgação

Disciplinadíssima, tinha uma memória privilegiada que me impressionava. Conseguia interpretar monólogos imensos de espetáculos que havia feito há mais de 30 anos. Era a sua maneira de demonstrar que carregava suas personagens vida afora.

Era a primeira a chegar no teatro. Repetia que aquele espaço era sua casa, o seu lugar no mundo.

Quando a dirigi, Vivinha tinha perdido recentemente o grande amor de sua vida, Carlos Zara. Estava fragilizada, triste e me disse que só o teatro poderia amenizar um pouco a dor da perda. E passou meses viajando pelo Brasil com o espetáculo.

Tinha um olhar afetuoso e generoso sobre o ofício. Falava de colegas, parceiros de cena, com entusiasmo, com um carinho comovente e verdadeiro, diferente das recentes polarizações que esgarçaram o que um dia foi chamado de "classe teatral".

Vivinha criou um clã de artistas. A filha Vivien Buckup, bailarina, diretora talentosíssima, e o filho John Herbert Buckup Jr., músico. Um dos seus netos, segundo suas palavras, “já foi contaminado pelo vírus do teatro”.

Eva Wilma fará uma falta enorme. Uma perda imensa para o teatro, a televisão, o cinema. Fazia parte daquele abençoado matriarcado da cena nacional. Uma das nossas grandes artistas, das maiores, das mais admiradas, das mais queridas.

Um dos trechos que ela sempre interpretava, e fazia parte do espetáculo "Primeira Pessoa", era o prólogo que Millôr Fernandes escreveu para a "Antígona", de Sófocles. Procuro o texto e o releio emocionado ouvindo sua voz. Que essa voz ecoe para sempre, que seja premonitória para esse momento de grandes perdas para a cultura brasileira.

“Algo mudou, bem sei.
A ambição mudou de traje,
A guerra de veículo,
O poder, de método,
O mundo girou muito,
O homem mudou pouco.
Mas repetir uma história é nossa profissão e nossa forma de luta.
Assim, vamos contar de novo,
De maneira bem clara,
E eis nossa razão.
Ainda não acreditamos que no final o bem sempre triunfa.
Mas começamos a crer, emocionados,
Que no fim, o mal nem sempre vença”

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