Descrição de chapéu

Diferença entre concerto ouvido em live ou em discos não é tão potente

Cabe à crítica acolher as novas formas de transmissão da música clássica em meio à pandemia

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Sidney Molina

É violonista, professor e crítico musical​​. Autor dos livros "Mahler em Schoenberg" e "Música Clássica Brasileira Hoje" e fundador do quarteto de violões Quaternaglia

Em depoimento colhido no DVD “My Life in Music”, de 2003, o violonista britânico Julian Bream, morto em agosto passado, aos 87 anos, recordou a experiência de, muito jovem, ter escutado pela primeira vez uma gravação de violão clássico.

Segundo ele —que haveria de se tornar um dos principais nomes da interpretação violonística em qualquer tempo—, uma aura “mágica” emanava daquela velha gravação de Andrés Segovia captada por um microfone de fita e prensada num disco de vinil de 78 rotações por minuto. A força dessa experiência inaugural com o som gravado estaria, segundo ele, na raiz da luta obsessiva que empreenderia para se tornar um concertista profissional.

Era a época da Segunda Guerra Mundial, e os concertos ao vivo —“presenciais”, diríamos nós hoje— do lendário Segovia haviam se tornado proibitivos na Europa. Como agora, na pandemia da Covid-19, havia então uma perene discussão sobre os limites da apreciação sonora –e consequentemente da crítica musical– realizadas por meios indiretos e “impuros” tais como gravações.

Que gravações musicais sejam produtos passíveis de reflexão e avaliação crítica acabaria por se tornar uma obviedade ao longo do século 20 –basta lembrar que a revista Gramophone foi criada ainda em 1923.

As atuais limitações para a realização de concertos com público e a consequente multiplicidade das formas de transmissão via streaming certamente trazem novos dilemas para a crítica musical, mas a diferença em relação à era do disco não é tão substancial assim.

Na prática, passa a ser importante considerar, para a avaliação, se o evento que escutamos e vemos é de fato ao vivo, se tem ou não público presente no teatro ou se, em vez disso, ele foi captado para uma transmissão assíncrona, ou, ainda, se pertence ao território das “gravações de estúdio” (das mais caseiras às mais profissionais).

Os formatos musicais disseminados após a pandemia afetaram alguns dos critérios (sempre móveis) em que a crítica musical se equilibram —eles tornaram mais complexa, por exemplo, a seleção das pautas jornalísticas.

Uma parte substancial do repertório clássico é globalizada, e se o espetáculo é transmitido pela internet, ele passa a competir com eventos similares de outras cidades e até mesmo de outros países.

Isso não significa que devamos deixar de acompanhar o que acontece na Sala São Paulo e no Theatro Municipal, trocando esses espaços pela Philharmonie de Berlim e o Scala de Milão. Mas, igualmente, não haveria razão para não se resenhar, periodicamente, concertos internacionais de destaque.

Mais do que nunca, porém, é preciso reconhecer, refletir e avaliar acerca do que há de incontornável na cena clássica brasileira. Vamos a um caso concreto.

No último dia 13 de março, o violonista brasileiro Fabio Zanon se apresentou em um recital solo na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. Sem público no teatro, a apresentação foi transmitida em tempo real, ao vivo, sem nenhuma edição.

O programa —com obras de Bach, Britten, Rodrigo e Albéniz— repetiu quase integralmente o da única histórica apresentação de Julian Bream no Brasil, ocorrida em 1979 na mesma Sala Cecília Meireles.

A homenagem do brasileiro ao mestre britânico não se resumiu à escolha do repertório. Ela estava entranhada no corpo sonoro, e a excelência da transmissão não escondeu as excepcionais características acústicas da sala carioca, uma das melhores do Brasil. Para além disso, a interpretação de Zanon combinava coerência, emoção e inteligência.

É missão da crítica ajudar a reconhecer e explicitar, para um público maior, em que consiste a força –cognitiva e sensorial– das experiências sonoras, bem como contextualizar essas experiências no vasto mundo da cultura humana.

Tal como no contato com os discos, o que escutamos no streaming é ou deveria ser um produto em si, e não um simulacro imperfeito de um recital acústico.

Cabe ressaltar também que os novos meios de transmissão permitem que os vídeos musicais transmitidos permaneçam acessíveis para apreciação posterior, o que dota o trabalho do crítico de uma saudável transparência jornalística, vide esse recital de Zanon, disponível no YouTube.

As conquistas tecnológicas deste e do último século permitiram que as experiências estéticas pudessem se dar a partir dos mais improváveis formatos, e não há por que recusar a possibilidade de que a arte de um artista seja potencializada pelo som gravado e transmitido. Até mesmo —por que não?— se isso se der através de um simples celular.

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