Elo entre modernismo de Lina Bo Bardi e indígenas é posto em xeque em obra

Intervenção sobre revista criada pela arquiteta ítalo-brasileira revela como a colonização foi apagada de suas páginas

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São Paulo

Lina Bo Bardi, que ganhou um troféu póstumo da Bienal de Arquitetura de Veneza neste ano, era também o nome por trás da revista de artes "Habitat", criada nos anos 1950.

Parte de um projeto pedagógico mais amplo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp, que era dirigido pelo curador Pietro Maria Bardi, também companheiro da arquiteta, a publicação não propagava só imagens da arte e do design modernos, mas também fotos de artefatos indígenas, a chamada arte popular.

A proposta do arquiteto Paulo Tavares em "Des-Habitat", publicação que será lançada pela editora N-1 em
junho, é intervir na revista original de modo a contextualizar a chegada dessas obras indígenas às grandes cidades —ligada a um processo de colonização que envolve a despossessão desses grupos e, depois, uma veneração perversa de suas cerâmicas.

Foto em preto e branco de cadeira redonda. Nela, uma pessoa senta de pernas cruzadas e segura uma revista
Colagem feita por Paulo Tavares em imagem da cadeira Bowl, da Lina Bo Bardi, com sua publicação 'Des-Habitat', com intervenções na clássica revista de artes da arquiteta - Paulo Tavares

"Desde muito cedo, fiquei impressionado em ver que a 'Habitat' trazia muitos objetos de povos indígenas como significantes do modernismo. No contexto nacional, principalmente no contexto paulista, eles foram levados a uma espécie de simbologia da brasilidade, do tropicalismo, de um modernismo particular dos trópicos", diz Paulo Tavares, sobre sua pesquisa.

"E me perguntei de onde vieram esses objetos, como apareceram na revista. Eles são mostrados como objetos de arte, abstraídos de seu contexto territorial."

“Des-Habitat” é quase um fac-símile da revista criada por Lina Bo Bardi, e reproduz seu aspecto vintage com folhas amareladas e fotografias com jeito de antigas. Entre as páginas da publicação original da arquiteta, estão textos que dão o tom do avanço de governos brasileiros, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, em terras indígenas.

O trabalho de Tavares foi, assim, feito a partir das páginas escaneadas de edições da Habitat. E contou ainda com um levantamento de reportagens sobre populações indígenas de outros veículos do ecossistema de que a revista de Lina Bo Bardi fazia parte, como a Módulo, criada em 1955 por Oscar Niemeyer, e O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand.

Selecionadas pelo arquiteto, as imagens de arquivo do Serviço de Proteção aos Índios na ilha do Bananal e de pinturas como a “Primeira Missa no Brasil”, de Victor Meirelles, se confundem com os stills de máscaras tikunas e esculturas publicadas na Habitat.

Já os textos que foram publicados a partir da década de 1950 saltam das páginas com muita distinção. "É surpreendente a descoberta nas margens do Araguaia, no fundo do sertão, de um grupo de ceramistas altamente e em constante evolução —alguns Picassos de tanga, modelando silenciosamente sua obra anônima", retrata um dos trechos.

Tavares defende que Lina Bo Bardi tinha um olhar antropológico singular, e isso transparece principalmente quando a Habitat é comparada a outras publicações. Numa reportagem de O Cruzeiro reproduzida agora em “Des-Habitat”, chamada “Ergue-se a cruz no Planalto”, uma fotografia mostra a primeira missa da inauguração de Brasília com uma semelhança ao quadro de Victor Meirelles, com um cocar no primeiro plano e uma pretensa união.

“A perspectiva dela para o popular, o indígena, a cultura de matrizes africanas se distancia de todos os outros nomes da arquitetura nacional”, diz Tavares. “Ela é uma grande referência, tanto por esse olhar quanto por sua própria atividade.”

O que a Habitat fazia, no entanto, era retirar esse cenário colonial de uma marcha para o oeste, por assim dizer, de suas páginas, mesmo apresentando esses objetos como obras de arte autônomas, comparáveis a uma criação de Matisse.

"É um paradoxo porque é um gesto curatorial talvez ousado para a época", afirma o arquiteto sobre a inclusão de parte desses artefatos retratados na revista no acervo do Masp, “mas ele estava, direta ou indiretamente, relacionado a esse contexto de extração de imagens”.

Ao rever a Habitat, Tavares costura também a herança da colonização que atravessa o modernismo no Brasil, assim como a relação deste com a arte colonial e com a construção de Brasília

Um dos exemplos mais fortes da publicação nesse sentido é o Hotel JK, uma extensão do projeto da capital do Brasil, na ilha do Bananal. Construído com a expulsão dos carajás de seu território, o hotel exibia em sua vitrine no lobby cerâmicas desse mesmo grupo, como mostra uma imagem de “Des-Habitat”.

Os próprios indígenas podiam ser observados da janela do prédio —numa operação perversa e parecida com aquela que os exibia nas páginas da revista, segundo Tavares, “suspensos entre um olhar moderno e um olhar colonial”.​

O arquiteto diz que não vê seu projeto como uma crítica a Lina Bo Bardi, mas como uma proposta que busca entender a profundidade do trabalho da arquiteta, com todos os seus paradoxos, e desse modo dar continuidade à potência de suas criações.

Cronologia

1914
Nasce, em Roma, Achilina di Enrico Bo, mais conhecida como Lina Bo

1940
Preocupada com a ascensão do fascismo em Roma, ela se muda para Milão, onde cria um estúdio de arquitetura e colabora com várias revistas; volta à Roma seis anos depois

1946
Se muda para o Brasil quando o marido Pietro Maria Bardi é convidado por Assis Chateaubriand para fundar um museu de arte moderna

1951
Se naturaliza brasileira

1992
Morre aos 78 anos, em decorrência de uma embolia pulmonar

Des-Habitat

  • Quando Lançamento previsto para junho
  • Preço R$ 70 (97 págs.)
  • Autoria Paulo Tavares
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