Entenda como Carlos Vergara levou um bloco de Carnaval para o museu com suas fotos

Livro resgata história de imagens que artista fez de foliões nas ruas do Rio de Janeiro, no auge da ditadura

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Fotografia de Carlos Vergara do bloco Cacique de Ramos, do Carnaval carioca, em 1972

Fotografia de Carlos Vergara do bloco Cacique de Ramos, do Carnaval carioca, em 1972 Reprodução

Porto Alegre

Três jovens negros de cabelo descolorido, sem camisa e com a palavra poder escrita em tinta branca no peito, posam com olhar compenetrado para a câmera de Carlos Vergara.

O retrato em preto e branco feito pelo pintor, que no início dos anos 1970 se aventurava pela fotografia de rua como forma de deixar a introspecção de seu ateliê e sentir a urgência do momento, captura um instante do bloco Cacique de Ramos, um dos mais tradicionais do Carnaval carioca.

“Para não usar o power, do black power, escrevemos ‘poder’”, relatou um deles sobre a palavra de protesto no peito, acrescentando que negro sem camisa durante a ditadura era tido como vagabundo.

Naquele dia, os jovens haviam pegado o trem em Oswaldo Cruz, bairro na zona norte carioca considerado o berço do samba na cidade, para se divertir no Carnaval do centro, às margens da estação Central do Brasil, quando foram abordados pelo fotógrafo.

Feita em 1972, a imagem e sua história estão no livro “Carnaval-Ritual”, do professor Maurício Barros de Castro, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lançado agora pela editora Cobogó. Na obra, o escritor resgata e contextualiza a série “Carnaval”, um potente conjunto de imagens que Vergara produziu sobre o Cacique de Ramos nos anos mais duros da ditadura militar.

As fotos selaram o casamento entre cultura popular e arte contemporânea e foram mostradas, entre outras ocasiões, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1972, e na Bienal de Veneza, em 1980, às vésperas da redemocratização.

“Naqueles anos sombrios que a gente estava vivendo, me interessava saber as manifestações que a população estava vivendo autenticamente, sem ser discurso, sem ser comício. Achei que devia mergulhar naquele mundo. Buscava uma coisa que fosse forte”, diz o artista, acrescentando que seu olhar sempre foi mais antropológico e experimental do que jornalístico e documental.

Formado no início dos anos 1960 por jovens negros do subúrbio carioca, o Cacique de Ramos reunia uma multidão de foliões vestidos de “índio” a cada Carnaval. As fantasias simples de napa e silk-screen e os esparadrapos brancos colados nos rostos guardavam grande apelo estético, acentuado pelo artista com as imagens em preto e branco reveladas por ele em seu laboratório. Há a reprodução de várias delas no livro.

Os figurinos eram facilmente customizáveis ao gosto do folião, o que tornava os participantes iguais e, ao mesmo tempo, diferentes uns dos outros. Isso estabelecia no bloco um lugar de relações horizontais e relativamente igualitárias, em que todos eram caciques, em oposição ao mundo fora dali, uma sociedade na qual “as hierarquias eram colocadas como forma de repressão”, diz o escritor, lembrando que o lema do bloco era “dos 7.000 componentes eu sou um”.

Além da utopia de igualdade vivida ao som das marchinhas, o Cacique de Ramos fazia o fotógrafo se deparar com o racismo estrutural brasileiro, um ponto que torna a série de imagens relevante ainda hoje, acrescenta o autor do livro. Nascido em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Vergara era um artista branco movido pelo encontro com a cultura popular do Rio de Janeiro produzida por negros da zona norte, influenciados tanto pelo samba quanto pelo movimento “black power” dos Estados Unidos.

As fotografias de Vergara retratam o bloco em momentos de pausa, com os foliões estirados no chão ou caminhando desapressados ao lado de uma poça d’água, mas também captam a emoção oposta, mostrando o êxtase dos participantes em resposta à bateria, numa imagem com a multidão meio borrada. Há ainda registros mais experimentais, em que o céu ocupa a maior parte do quadro e os “índios” aparecem de costas.

Existem duas maneiras de se vivenciar o Carnaval, diz Vergara —como desfilante e como observante. “Um está fantasiado no meio da avenida, e o outro está acompanhando do lado.” Ele assumiu os dois papéis enquanto realizava as fotos. “Eu tinha fantasia para entrar no bloco e ter proximidade com todo mundo, eu era e eu sou um Cacique de Ramos.”

Como interlocutor, Vergara tinha o amigo Hélio Oiticica, outro artista fascinado pelo Carnaval carioca. Oiticica foi passista da Mangueira, e a partir dessa conexão com a escola verde e rosa surgiram os seus famosos "Parangolés". O livro reproduz uma conversa entre os dois gravada em Nova York, onde Oiticica morou na década de 1970, chamada de “Rap in Progress nº1”, sobre a paixão comum a ambos.

Questionado se sua série segue atual, Vergara diz que sim, devido ao aspecto político do bloco, que prezava a horizontalidade e a irmandade entre diferentes. “Estamos vivendo exatamente o contrário disso, uma coisa hierarquizada, esse poder lá longe, em Brasília, distante de todo mundo, sem usar máscara, espalhando veneno e não espalhando bondade.”

Carnaval-Ritual: Carlos Vergara e Cacique de Ramos

  • Preço R$ 52; 192 páginas
  • Autor Maurício Barros de Castro
  • Editora Cobogó
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