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Filme 'O Mauritano' não é ótimo, mas vale como documento histórico

Drama conta história real de engenheiro que passou 14 anos em Guantánamo sem ter sido acusado de nenhum crime

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O Mauritano

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  • Preço R$ 29,90
  • Classificação 18 anos
  • Elenco Tahar Rahim, Jodie Foster, Benedict Cumberbatch, Shailene Woodley
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Kevin Macdonald

“O Mauritano” não é um ótimo filme, mas merece ser visto. Dirigido pelo escocês Kevin Macdonald, ele conta a história real do engenheiro mauritano Mohammedou Slahi, encarcerado por 14 anos na prisão de Guantánamo sem ter sido acusado de nenhum crime.

O drama escorrega nos clichês e faz mau uso dos flashbacks. Mas vale como documento histórico —é importante que o calvário de Slahi, interpretado por um magistral Tahar Rahim, do premiado longa “O Profeta”, não caia no esquecimento.

“O Mauritano” é baseado no diário de 466 páginas que Slahi escreveu à mão enquanto estava em sua cela em Guantánamo. Ele terminou de escrever em 2005, mas o manuscrito ficou "sob revisão" do governo americano por mais de seis anos até ser liberado para publicação. O "Diário de Guantánamo” foi publicado em 2015, com todas as 2.600 tarjas pretas dos censores, e se tornou um best-seller mundial.

O filme começa no momento em que Slahi é capturado na Mauritânia, poucos meses após os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos, que deixaram mais de 3.000 mortos. Na época, o então presidente George W. Bush embarcou na chamada “guerra ao terror” para caçar o líder da Al Qaeda, Osama bin Laden, e seus asseclas, que haviam arquitetado o ataque terrorista.

“Depois dos ataques em Nova York, os americanos enlouqueceram... e eles querem falar com você”, diz a Slahi o policial mauritano que o prende, no filme.

Da Mauritânia, Slahi foi levado por agentes americanos para uma prisão secreta da CIA, a agência central de inteligência americana, na Jordânia, onde permaneceu por sete meses e meio e foi torturado. Depois, foi transferido a um centro de detenção em Bagram, no Afeganistão. Slahi chegou à base de Guantánamo em 5 de agosto de 2002. Ficou lá até 17 de outubro de 2016.

Jodie Foster interpreta a advogada Nancy Hollander, que aceita defender Slahi sem custos. Ela e sua assistente são chamadas de defensoras de terroristas.

O currículo de Slahi, de fato, era muito suspeito. Aos 18 anos, ele ganhou uma bolsa para cursar engenharia elétrica na Alemanha e viveu lá por muitos anos. Nos anos 1990, interrompeu seus estudos para se juntar aos mujahidin, combatentes dispostos ao sacrifício da própria vida em nome de Alá, no Afeganistão.

Os mujahidin haviam lutado para derrubar o governo afegão alinhado à União Soviética, com apoio financeiro e logístico dos EUA. O saudita Bin Laden tinha se juntado a eles nos anos 1980 e criou a Al Qaeda em 1988. Assim, Slahi, quando estava no Afeganistão, foi treinado pela Al Qaeda. Mas ele afirma ter cortado todos os laços com a facção muitos anos antes dos atentados de 11 de Setembro.

No entanto, um primo de Slahi, Mahfouz Ould al-Walid, era um conselheiro espiritual do líder extremista, e havia telefonado para Slahi do telefone satelital de Bin Laden.

Mas Slahi negava terminantemente ter qualquer ligação com a Al Qaeda ou os atentados e a inteligência americana não tinha nenhuma evidência concreta disso. O governo Bush estava desesperado para achar qualquer coisa que pudesse ser usada para condenar presos de Guantánamo diante da pressão popular para punir culpados pelo 11 de Setembro.

Aí entraram em campo os interrogadores que se valiam das chamadas táticas “avançadas”, um eufemismo para torturas, sancionadas pelo Estado.

Slahi ficou em isolamento durante anos, era obrigado a ficar de pé horas seguidas, em posições dolorosas, em temperatura congelante na cela; era espancado repetidamente e proibido de dormir; levado para o mar, sofreu tentativas de afogamento pelos interrogadores. Eles diziam que iriam levar a mãe de Slahi para Guantánamo, onde ela seria estuprada, se ele não colaborasse.

Diante de incessantes sessões de tortura, Slahi confessou ter sido um recrutador da Al Qaeda.

A advogada interpretada por Foster quer pedir um habeas corpus para o detento, afirmando que o governo americano precisa mostrar alguma evidência concreta contra ele ou libertá-lo. A única prova, digamos, dos americanos é a confissão de Slahi, obtida sob tortura.

Hollander convence Slahi a descrever todos os maus tratos a que foi submetido para tentar invalidar sua confissão. Representando a acusação está Benedict Cumberbatch, na pele do coronel Stuart Couch, que quer pedir a pena de morte no “julgamento militar” —um arremedo de julgamento criado pelo governo americano em Guantánamo, em que os réus não sabiam do que eram acusados e não tinham acesso às provas

O francês Rahim dá profundidade a Slahi, mostrando o mauritano em seus momentos de solidão e quase loucura na cela, suas conversas com um vizinho francês de “gaiola”, suas discussões com a advogada e o senso de humor que sobreviveu a anos de maus tratos.

Mas as intermináveis cenas de tortura, mostradas em flashback, acabam dessensibilizando o espectador, e não conseguem despertar nele a revolta e as emoções que deveriam. Além disso, Cumberbatch interpreta um promotor ultraidealista que carece de verossimilhança. E Foster repete sua performance de advogada durona.

Atenção para o spoiler. O melhor momento do filme é o final, que mostra Slahi em carne e osso, livre, na Mauritânia. O mauritano é flagrado cantando uma música de Bob Dylan e sorrindo, leve, em uma prova da resiliência humana.

E é por isso que o um filme deve ser visto. Não se pode esquecer o martírio de Slahi e outras centenas de pessoas que apodreceram anos em Guantánamo, com torturas frequentes, sem nenhuma acusação formal. A prisão sem lei por onde passaram mais de 750 pessoas está aberta até hoje, e ainda abriga 40 detentos —alguns deles não foram acusados de nada, mas não encontraram países dispostos a acolhê-los.

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