Fotógrafo vira entregador de comida na pandemia e registra cotidiano em ensaio

O carioca Allan Weber mostra em 'Tamo Junto Não É Gorjeta' imagens de quem carrega a comida no isolamento social

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São Paulo

“Tamo Junto Não É Gorjeta.” Esse é o título do ensaio fotográfico de Allan Weber em que registra momentos de seu trabalho como entregador de aplicativo.

“A pessoa pega o lanche e fala ‘valeu, tamo junto’. Às vezes eu estou encharcado de chuva. Tamo junto nada. Estamos em realidades completamente diferentes, a gente não está junto”, diz o fotógrafo de 28 anos que desde o começo da pandemia passou a trabalhar com entregas.

“Trabalho demais, não tenho grana. No começo eu passava um perrengue sinistro. Ia pegando R$ 10 emprestados para colocar gasolina e ir trabalhar”, diz ele. “Às vezes só de oferecer uma água ajuda. A pessoa não sabe o que acontece desde a hora em que ela pede o lanche até chegar na mão dela. Acontece muita coisa. O cara que entrega o lanche é uma pessoa, igual a quem pede.”

Weber fez todo tipo de trabalho, de estoquista e ajudante em descarga de caminhão a revendedor de roupas garimpadas por aí. Ele passou a fotografar depois de conhecer um grupo de skatistas na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro.

Comprou uma câmera analógica e começou a registrar os amigos do bairro onde mora, o Cordovil, na zona norte carioca, em atividades como descoloração de cabelo, jogando futebol e empinando pipa, ou se preparando para sair na turma de bate-bolas, tradição do Carnaval no subúrbio da qual Weber faz parte desde os dois anos. Passou também a trabalhar em atividades ligadas ao audiovisual, setor que sentiu forte o baque da pandemia.

No ano passado, lançou seu primeiro livro, “Existe uma Vida Inteira que Tu não Conhece”, em que reúne algumas dessas imagens.

oito fotos com caixas de isopor de entrega abertas com pacotes dentro
Imagens do ensaio 'Tamo Junto Não É Gorjeta', do fotógrafo Allan Weber, que está na 20ª edição da revista Zum - Divulgação/Revista ZUM

Weber nunca tinha trabalhado em cima de uma motocicleta. Sabia dirigir porque, segundo ele, desde pequeno todo mundo anda de moto na favela. Mas, quando começou a entregar por serviços de aplicativo, nem habilitação tinha. Começou nos três turnos da alimentação, café da manhã, almoço e jantar. Hoje ele sai pela cidade apenas no período noturno, mas faz entregas pelo bairro para lojas e serviços de conhecidos.

Ele conta que resolveu passar a levar sua Pentax para o trabalho ao se deparar com “imagens bizarras”, como mesas gigantes em estacionamentos de shoppings onde os pacotes eram entregues ou carrinhos com pilhas de sacolas de diferentes restaurantes.

Em muitas das fotos não há figuras humanas, ou há apenas parte delas. Em preto e branco ou coloridas, transmitem a solidão e o vazio que marcaram sobretudo os primeiros meses da pandemia, quando aprendíamos a lidar com o vírus e evitávamos todo e qualquer contato físico. Numa delas, aparece apenas um braço por uma porta de ferro entreaberta segurando um pacote. Em outra, caixas de pizza repousam sobre um banco à espera de serem recolhidas.

Weber diz, porém, que ser entregador não é solitário e que fotografar faz o trabalho menos chato. “Motoboy é muito unido. Você sempre é acolhido e pode falar com colegas entre uma entrega e outra, na portaria, esperando.” Há também imagens desses momentos de partilha, como o retrato de um porteiro com quem ele conversou aguardando um cliente ou o de um colega, fotografado enquanto esperavam por chamadas num shopping.

homem de cabelo raspado fazendo V com as mãos em selfie
O fotógrafo carioca Allan Weber, que, na pandemia, virou entregador e dedicou ensaio ao tema - Allan Weber

As fotografias da série “Pipandemia”, que pode ser vista no site do fotógrafo, são mais solares. Para soltar pipa o ideal é ter céu limpo; e as imagens de jovens em cima de lajes segurando carretéis de linha sob o azul claro transmitem a alegria dos dias de descanso.

Weber conta que fez as fotos nas primeiras semanas da pandemia, quando, em sua comunidade, todos estavam dentro de casa e, mesmo que não fosse “tempo de pipa” (que ele descreve como sendo a época das férias escolares), os vizinhos subiam nas lajes para a brincadeira.

Quando conheceu os amigos do skate na zona sul, passou a fotografar e a frequentar galerias. Ele conta que não via nas fotografias expostas a cultura do subúrbio. “Tinha amigo meu que não sabia o que era pipa ou bate-bola”, diz. “O que eu via dentro das galerias me fazia acreditar que o que eu produzia nunca poderia estar lá dentro.”

O ensaio sobre a vida na entrega de alimentos na pandemia estampa a próxima revista Zum, publicação do Instituto Moreira Salles dedicada à fotografia, que chega às livrarias no dia 20 de maio. A edição publica ainda a série "Mesa da Cozinha", de 1990, da fotógrafa americana Carrie Mae Weems.

Lançamento da revista Zum n. 20

  • Quando 20 de maio (qui.), às 18h; debate online com Allan Weber e Lita Cerqueira
  • Onde Transmissão nos canais de YouTube (youtube.com/user/revistaZUM) e Facebook (facebook.com/revistazum) da revista; grátis
  • Preço R$ 57,50 (184 págs.)
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