Orquestras reaprendem a tocar Beethoven distanciadas no palco durante a pandemia

Clarinetistas e cantores ficam atrás de chapas de acrílico e instrumentistas usam máscara na retomada dos concertos

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São Paulo

A expressão cada um no seu quadrado ganhou caráter quase literal para o clarinetista Daniel Oliveira. Um dos fundadores da orquestra do Theatro São Pedro, o instrumentista passou a se apresentar rodeado por placas de acrílico nos últimos meses.

“Precisamos nos acostumar com os aquários, que neste momento são essenciais para a minha proteção e de meus colegas da firma”, postou ele em seu Instagram, na semana passada, poucos dias antes de tocar a peça “Invisible Duet”, do compositor contemporâneo sueco Fredrik Högberg, no palco do teatro da capital paulista.

Com a retomada gradual dos concertos durante a pandemia, músicos de instrumentos de sopro passaram a ter cuidados a mais nos palcos das orquestras, uma medida de proteção contra o coronavírus. “É como se eu entrasse dentro de um guarda-roupas”, brinca ele, em relação a como o acrílico afeta o som de seu instrumento.

Além de isolar os músicos, a pandemia tem causado outras mudanças profundas em conjuntos de música clássica, habituados a se apresentarem às dezenas em cima do palco, às vezes beirando os cem músicos. Uma delas é a diminuição radical do número de pessoas em cena.

A Osesp, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, por exemplo, passou a priorizar programas que possam ser executados com entre 40 e 45 músicos, em vez de 85 ou 90, afirma Arthur Nestrovski, diretor artístico da orquestra, uma das principais do país.

Se este número impede que uma sinfonia de Gustav Mahler seja tocada, já que suas composições chegam a exigir 150 músicos no palco, a Osesp gravou oito das nove sinfonias de Beethoven com formação de pandemia, com 50 músicos, sem perda de qualidade, de acordo com o diretor —normalmente, haveria em torno de 75 instrumentistas.

Outra mudança é a disposição física dos músicos no palco. Na Osesp, os violinos e as violas não estão mais lado a lado dividindo a leitura de uma mesma partitura, mas sim organizados em fila indiana —uma pessoa fica sentada atrás da outra, com distanciamento de um metro e meio, e sempre de máscara. Flautistas estão agora a dois metros e meio de seus colegas, mais do que o dobro do espaçamento pré-pandemia.

Essa nova acomodação, chamada por Nestrovski de “resistência positiva” ao se referir a como os músicos têm encarado o desafio, causa estranhamento. “A ideia da orquestra é que ela seja um conjunto de sons, é coeso, e tocar tão longe um do outro exigiu aprendizado na prática, eles tiveram que se acostumar.”

A distância acústica entre os músicos muda a percepção que eles têm ouvindo uns aos outros, exigindo um rearranjo geral. O afastamento dos instrumentistas mais ao fundo em relação ao maestro, bem à frente, também demanda adaptação do conjunto, embora o público na sala de concertos ou quem acompanha a apresentação pela tela do computador não perceba os ajustes ao ouvir o trabalho final.

Para os cantores líricos, o cenário também é de adaptação. Ao longo do ano passado, depois de contaminações em massa em coros na Holanda, na França e na Alemanha, uma série de estudos apontou que cantar, mesmo em voz baixa, produz uma quantidade de aerossóis maior do que respirar, aumentando as chances de transmissão do coronavírus. Quanto mais alto o volume da voz, mais partículas são jogadas ao ar.

“O canto coral hoje é muito arriscado —44 cantores juntos a gente ainda não sabe como resolver”, afirma a soprano e professora de canto Marília Vargas, que diz estar com o coração a mil por se apresentar neste final de semana pela primeira vez numa sala de concertos desde o início da pandemia, em março do ano passado.

Um dos desafios enfrentados por ela ao treinar seus alunos é fazer com que iniciantes compreendam que devem cantar para o fundo do teatro, e não para a caixinha de acrílico na qual se acostumaram a ensaiar durante a pandemia. O outro é recuperar o senso de unidade em corais com menos cantores.

“Quando você canta junto com outro no coro, a sua célula vibra com a do vizinho, é a mesma sintonia, uma mágica que acontece quando você está perto da outra pessoa. Não é só o maestro mostrando o ritmo. Com o acrílico e a distância, você perde 80% disso. Então vem o desafio de juntar de uma outra forma. É esta forma que estamos aprendendo como fazer", diz ela.

A soprano Marília Vargas se apresenta durante a Virada Cultural, em 2020, usando um protetor facial devido à pandemia - Heloísa Bortz

As pessoas ouvidas mencionam a paralisação das atividades de grupos de música clássica em períodos de guerra como outro momento complicado na história. Mas nada se compara às dificuldades e à escala da pandemia, que brecou orquestras no mundo justo no momento em que os programas comemorariam os 250 anos de nascimento de Beethoven, em 2020.

Há, contudo, uma semelhança mórbida entre o período atual e meados do século 17, quando o compositor barroco Bach nasceu. Sua Turíngia natal —depois incorporada à Alemanha— era devastada por guerras, pela fome e por pragas, num contexto em que a expectativa média de vida girava em torno de 30 anos.

Era um “mundo com a presença da morte constante, parece o nosso, é exatamente o que a gente está passando agora”, diz Nestrovski.

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