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Paulo Henriques Britto oferece o prazer banal e raro da leitura de contos

Livro 'O Castiçal Florentino' se constrói com precisão semântica e modulação quase milimétrica de tom

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O Castiçal Florentino

  • Preço R$ 59,90 (224 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Paulo Henriques Britto
  • Editora Companhia das Letras

Desde "Paraísos Artificiais", lançado em 2004, não tínhamos a satisfação de ler um livro de contos do poeta e tradutor Paulo Henriques Britto. Durante esse tempo ele publicou livros de poesia e não parou de traduzir, mantendo-se fiel ao trabalho escrupuloso no qual a escolha de cada palavra conta.

O que poderia ser só um clichê, aplicável à literatura em geral, é um dado decisivo na escrita de Britto. A precisão rítmica e semântica, as modulações quase milimétricas de tom são preocupações que valem para o tradutor, para o poeta e não menos para o contista.

Só isso já explicaria o prazer de ler "O Castiçal Florentino", conjunto de nove contos, quase todos inéditos, recém-lançado pela Companhia das Letras.

Manejando a tensão narrativa própria do gênero conto, o livro explora situações em que o destino e o acaso se trançam, revelando uma espécie de fatalidade do banal. E não falo aqui da fatalidade ordinária calamitosa presente em um Horácio Quiroga, onde um personagem podia de repente cair estupidamente sobre a própria faca e agonizar na solidão.

Não sendo apresentados como proprietários soberanos de sua história de vida, são por outro lado narradores notáveis de si mesmos, capazes de contar com exatidão o que lhes sucede ou sucedeu um dia.

Acolhem o acaso cotidiano como uma espécie de destino sem transcendência. Não são histórias exemplares, não prometem nada, a vida é o que é, nem mais nem menos.

A condução tensa dos relatos suscita dúvida e expectativa, entretanto os acontecimentos não desembocam na cena traumática que revelaria de forma chocante a história por trás da história, como ocorre em Hemingway ou nos clássicos modernos.

O conto que abre o livro narra as desventuras de um jovem engenheiro com uma trupe teatral amadora, de inspiração artaudiana. Os atores envolvem o narrador de tal modo em seu projeto que ele acaba por duvidar da autenticidade do que vive.

O que faz rir nessa leitura não é só a inflexão um pouco paranoica ou o olhar zombeteiro —às vezes deliberadamente preconceituoso— dos narradores.

 O poeta Paulo Henriques Britto
O poeta Paulo Henriques Britto - Lucas Seixas/Folhapress

Britto joga com a possibilidade do cômico ao dar vazão à neurose de narradores que avançam tendo que negociar com a própria obsessão narrativa, ou seja, respondendo a todo momento à pergunta: qual a melhor forma de contar esta história? Qual a melhor palavra para dizer isto?

Machadianamente, conversam com os leitores, considerando a substituição de uma palavra, irritando-se com questões de ortografia, com atenção incomum às questões vernáculas.

No conjunto, o livro parece propor a exploração de um implacável pessimismo em relação a tudo e a si mesmo. Decisões importantes são tomadas em função de elementos sem grandeza —um contratempo urbano, um tolo esquecimento. Não é que as personagens sejam cínicas ou impermeáveis ao vivido, mas são em tudo diferentes das vozes que, ao narrar, creem poder reparar seu sofrimento.

Ao revelar a estranha força do ordinário sobre as fortunas de cada um, o poeta se encontra com o narrador e toma o partido das coisas como elas são, sem se agarrar às promessas de redenção, nem mesmo à redenção pela palavra. E desse modo acaba por nos oferecer de novo o prazer banal e raro de ler literatura.

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