Descrição de chapéu
Bia Lessa

Paulo Mendes da Rocha é alguém que constrói, como pode criar rombo?

A morte dele é a interrupção de uma trajetória que não deveria ter fim e me deixa com um vazio imenso

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Bia Lessa

Atriz e diretora brasileira

Assim eu me sinto, arrombada, vazia. Se nas semanas anteriores meus sentimentos eram de aperto, angústia, ansiedade e até esperança, hoje se instalou em mim o vazio.

Vazio imenso.

A dor me deixa quase sem força, o corpo prostrado, o olho inchado e uma sensação do nada.

Muito se sabe do Paulo Mendes da Rocha, suas obras, seus livros. Mas o que mais me encantava era aprender com ele nos menores gestos, nas pequenas observações, na conduta.

Quando eu o conheci, seu escritório não tinha geladeira, não se servia nem café nem água —sede tinha que ser matada na birosca da esquina, onde se podia encontrar as pessoas— era uma chance de usufruir da cidade —a grande invenção do homem, segundo ele.

Eram horas de conversa, entre papéis, tesoura, lápis, giz, cigarro e, no fim do dia, ou na hora do almoço, quando o trabalho permitia e convidava —o uísque. Foram horas de ver pela janela o movimento das ruas, as prostitutas, os bêbados, as construções que se erguiam, o prédio transformado em garagem em frente a seu escritório.

No escritório não havia nada que não fosse absolutamente necessário. Nas paredes, agora pintadas, havia rabiscos de projetos, pêndulos, pequenas maquinarias criadas por ele. O banheiro era também um depósito com vassoura e pano de chão, não havia nenhum vício do mundo oficial. Ali apenas o mundo real!

Sempre muito elegante, camisa rigorosamente passada, e uma disponibilidade ímpar.

Seu escritório teve durante anos a porta aberta, chegávamos de surpresa, invadíamos e era sempre uma alegria e o prenúncio de palavras memoráveis.

Passei ali infinitas tardes e ali conheci muitas pessoas, que também, como eu, invadiam aquele espaço.

Havia sempre um projeto novo para mostrar, um texto que tinha lido, um parágrafo de um livro, o interesse por cada coisa que estávamos fazendo.

Ele não era um arquiteto, ou não era apenas um arquiteto, era muitas coisas e essas coisas estão presentes em sua obra, mas estão profundamente cravadas em sua ação cotidiana. O interesse imenso pelo outro, o desejo de saber, de conhecer e de se meter.

Essa particularidade na qual criador e criatura se somam nem sempre acontece. Sua ação, seu comportamento era da altura de sua obra.

Nossas conversas começavam sempre com uma negação, e invariavelmente ele ia dentro do próprio pensamento maravilhando-se com aquilo que à primeira vista era inadmissível.

Sua cabeça, sem travas, caminhava veloz. Muitas e muitas vezes encontrava saídas únicas.

A conduta foi sempre radical, firme, inabalada. Sua alegria e sua tristeza imensas, seu amor pelo homem e pela possibilidade da criação do homem inabaláveis. Seu humor e seu cavalheirismo impecáveis.

Escrevendo percebo que nunca tivemos uma conversa pessoal, seu interesse era sempre entender e se deslumbrar com a história, os fenômenos, os processos.

Cena da peça 'Futebol', com direção de Bia Lessa e cenário de Paulo Mendes da Rocha - Divulgação

Um dia em sua casa, provavelmente em fevereiro do ano passado, um pouco antes da pandemia, conversando sobre "Aida", que eu estava montando em São Paulo, e ele me apresentou um salgadinho que tinha descoberto na mercearia.

Aquele salgadinho foi motivo de falar do Líbano, dos imigrantes, das variadas culturas, da imbecilidade das fronteiras impostas pelos poderes políticos. Qualquer pretexto, qualquer coisa sem valor, o transportava às questões que eram de fato interessantes.

Enfim a vida, seja ela privada ou pública, profana ou sagrada, serve sempre à reflexão.

No escritório ele me fazia observar da janela os transeuntes e o que aquilo significava e na janela de sua casa, os pássaros que pousavam em determinada hora, iam embora, voltavam. Como dizia Guimarães Rosa, mire e veja.

E o Paulo era uma personalidade que constantemente estava a serviço da observação e da reflexão. Por essa razão estar com ele, fosse para o que fosse, era sempre usufruir de conhecimento, aprendizado e afetividade.

Se eu me queixava da dor, ele retrucava, só o imbecil não sofre. Se eu perguntava se ele estava se adaptando à mudança de endereço, antes a casa no Butantã, grande, agora um apartamento na avenida Angélica, e ele, firme, dizia que casa é lugar para fazer xixi, cocô e dormir.

Poderia descrever aqui mil momentos como esses! O apartamento da Higienópolis sem portas, o apartamento da Angélica, que transformou numa planta circular —“o que era pequeno agora não tem mais fim”, ele dizia.

Um apartamento meu de 38 m2 para o qual ele fez um projeto e dizia "olha que cozinha imensa, esse apartamento é muito grande, você tem três janelas!". "Uma maravilha!"

Isso era Paulo.

Ele me dizia que não se interessava mais por construir, gostava de reformar, tudo já está feito o importante agora era modificar, dar uma outra função às coisas existentes.

As memórias são muitas, e a dor imensa.

Sei que essa morte foi direita, como devia ser, aos 92 anos, depois de ter vivido tão lindamente.

Ele vinha me dizendo que não acharia ruim morrer no meio dessa pandemia, junto de tantos!

Mas para mim é uma morte estúpida.

É claro que ele não podia viver para sempre, mas devia!

Nosso primeiro trabalho foi a ópera "Suor Angelica", no Theatro Municipal de São Paulo.

Com ele aprendi o que significava geografia cênica, ele nunca construiu um cenário, sempre sua criação era um espaço que obrigava a cena e os personagens a existirem de forma ativa.

Nesse caso, o espaço era composto de alguns elementos que compunham de fato uma geografia –abismos, picos, frestas e veredas. Vou tentar descrevê-lo.

Havia apenas duas possibilidades de entrada em cena.

Uma delas era uma porta estreita e baixa onde as freiras tinham que se curvar para atravessá-la (levar a cabeça para perto do coração —não é isso a fé?).

A outra possibilidade de entrar em cena era uma escadaria que ocupava todo o palco do Municipal e vinha do fundo em direção ao público —uma escada invertida, invisível, enterrada no palco, e os cantores surgiam como que vindos do subterrâneo (não é isso que vivemos, uma constante luta com nossos subterrâneos?).

Beirando o precipício criado pela escadaria —um caminho estreito onde as cantoras eram obrigadas a caminhar solitárias (não é isso o silêncio?).

O espaço era contido por três paredes altíssimas criando uma espécie de prisão, um espaço de confinamento, mas, no topo, podia se ver um pequeno retângulo, um buraco de onde se via o movimento da cidade.

A cidade estava em cima, logo todo o espaço cênico estava enterrado —a cena se passava embaixo do mundo. (Não seria isso a clausura? Estar dentro do mundo e ao mesmo tempo fora dele?)

A estrutura que segurava essas imensas paredes criava espécies de pregos gigantes por onde as freiras literalmente escalavam as paredes (não é o que fazemos diante da dor —subir pelas paredes?).

O Paulo tinha um profundo entendimento da condição humana. E esse entendimento era cravado em sua obra. Um dia, no meio de nossas tardes em seu escritório, empurrou uma enorme lousa e me mostrou rabiscada na parede o desenho de uma arquibancada que criou para o espetáculo "Homem sem Qualidades" —estava ali, na parede, o registro de nossas alegrias. Era assim, se o papel era pequeno, a parede era grande, e tudo que houvesse existia para dar suporte ao raciocínio.

Cena da peça da 'Homem sem Qualidades' - Folhapress

No mundo encontramos alguns mestres, alguns lemes, o Paulo era o meu, junto com Violeta Arraes. Violeta se foi, agora ele. De fato agora estou órfã.

Posso dizer que ele me acompanhou toda a minha vida profissional, ou quase toda.

Depois que nos encontramos nunca mais nos largamos. Para mim essa perda é irreparável, minha vida certamente terá menos encantamento.

Sofro também por não poder compartilha-lo mais. O Paulo era dessas pessoas que dava desejo de compartilhar, todos os amigos que fiz ao longo desses anos apresentei ao Paulo.

Estar com o Paulo era dar à vida uma outra qualidade, e essa é uma perda que não tem solução.

E não tenho o consolo de ter aprendido, ou de ter tido o prazer do convívio, porque, no caso do Paulo, havia sempre um pensamento por vir, ele não tinha acabado a frase ainda, ainda havia o que ser dito.

Esse o sentimento que me invade, nesse momento turbulento que estamos vivendo. É claro que foi mais ou menos na hora que ele queria que ele morreu, depois de ter tido uma vida imensa, e depois dos 92 anos, mas, contrariando as convenções, essa morte vem me afirmar o sentido do trágico.

A morte do Paulo é a interrupção de uma trajetória que não deveria ter fim.

Tenho muitas horas de conversa gravadas com ele ao longo desses anos, vou ouvi-las e elas me farão companhia, mas a falta será imensa.

Viva a terra que produziu um homem e um amigo da envergadura do Paulo Mendes da Rocha —que ela possa continuar fértil, que nós saibamos adubá-la, que ela não apodreça. Com a morte do Paulo, nossa responsabilidade dobra.

Ps. Paulo querido, e agora?

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