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Quem é Ocean Vuong, poeta gay que inspirou o diretor de 'Me Chame pelo Seu Nome'

Escritor americano de origem vietnamita lança no Brasil o best-seller 'Sobre a Terra Somos Belos por um Instante'

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Colagem do artista Nino Cais Reprodução

Copenhague

Uma longa carta à mãe que não a lerá. Um romance sobre afetividade em estado bruto, sobre o rescaldo da Guerra do Vietnã moldando relações familiares. Um livro sobre filiação, sobre ser filho e neto e não ser ninguém, sobre um garoto amarelo crescendo nas fendas da sociedade americana.

A história de uma mãe violenta, abusiva e amorosa. Um romance autobiográfico sobre dois garotos tateando no escuro, descobrindo sexo e amor, experimentando a fineza de afetos contranormativos num país profundamente militarista.

Tudo isso poderia nos introduzir no belo e impressionante romance de estreia do escritor vietnamita-americano Ocean Vuong, "Sobre a Terra Somos Belos por um Instante", que chega agora ao Brasil na tradução de Rogerio W. Galindo.

Contrariando as convenções do mercado editorial, que viam nessa profusão de temas e questões um excesso ineficiente, Vuong queria um romance que avança, retrocede e se ramifica, na fluência de lembranças cortadas por uma realidade convulsiva.

foto em preto e branco de homem de casaco e mãos nos bolsos
O poeta, ensaísta e romancista vietnamita-americano Ocean Vuong - Tom Hines/Divulgação

Publicado em 2019, o livro esteve por seis semanas na lista dos mais vendidos do New York Times e está sendo traduzido para 33 línguas.

O sucesso de vendas e a enorme visibilidade podem ser em parte explicados pela aparição de Vuong na cultura pop americana. Seu livro é citado num episódio de "We Are Who We Are", série dirigida por Luca Guadagnino —de "Me Chame pelo Seu Nome"— para a Sky Atlantic e a HBO. Embora não seja suficiente para justificar a consagração do livro, isso mostra que a literatura depende hoje de outras esferas midiáticas para despertar interesse em seus potenciais leitores.

Entretanto, o sucesso aí é mais que o resultado de uma boa estratégia de divulgação. É um raro fenômeno em que a força narrativa encontra ressonância nos leitores contemporâneos porque repõe a literatura no centro de nossa educação sentimental.

Literariamente audacioso, o livro enlaça traumas históricos, questões de raça, classe e sexualidade sem fazer concessões nem ao gênero romanesco, nem às possibilidades reflexivas da narrativa em primeira pessoa. “Eu queria ver o que aconteceria se o romance absorvesse a poesia.”

Nem didático, nem rendido a lugares-comuns do discurso militante, o livro é denso e lírico, consegue captar os efeitos da linguagem sobre a vida e vice-versa. “Se o romance é o cavalo de Troia, a poesia são os soldados que estão lá dentro.”

No premiado livro de poemas de 2017, "Céu Noturno Crivado De Balas", publicado no Brasil pela Ayinê, Vuong recorria à mitologia grega para construir as imagens de um pai ausente.

Já o romance tem como linha de força a relação com as mulheres de sua família —mãe e avó. Entremeando memórias de infância, cenas de guerra vividas pela avó e a vida da mãe na Saigon arrasada, o narrador produz uma vertiginosa miríade de sensações.

A relação com o idioma é central ao longo do livro, que percorre os desafios da aquisição do inglês pela mãe semiletrada e a difícil posição do filho, convertido em intérprete da família. Comentando sua própria relação com o inglês, ele não hesita. “É a língua que escolhi para fazer minha arte, é o idioma mais maleável para mim como escritor, mas meu ouvido é vietnamita. Isso significa que estou sempre atento à tonalidade, que a variação de sons importa, cada sílaba importa, e isso me ajudou muito a perceber as nuances do inglês”, diz o escritor.

Vuong se interessa pela história da literatura anglo-saxã e diz ter em Herman Melville uma de suas inspirações. “Moby Dick é um livro que faz convergir muita coisa, é quase esotérico, é um romance sobre amizade, sobre viagens, é um manual de caça às baleias, é um ensaio, um romance, poesia, traz coisas de Shakespeare. É fascinante porque há nele esse desejo da cultura americana de englobar tudo.”

Ele se diz inspirado por essa audácia romanesca e pelo risco que suporta, não queria aderir às fórmulas de eficácia e coesão narrativas, algo que ele identifica com uma cultura literária capitalista, competitiva e fálica.

“O grande romance é moldado pelo ideal de performance hábil, como uma trepada eficiente que só mira a ejaculação.”

Vindo da poesia, ele queria fazer um livro mais aberto, caleidoscópico, intrincado, “um livro tão complicado quanto a vida”. Incorporou também o saber das artes marciais, especialmente as brasileiras. “Talvez isso cause surpresa, mas, para mim, a capoeira segue uma estrutura que não é a da vitória nem a do conflito, é a de negociar e colaborar com o oponente e improvisar. Os capoeiristas lutam como os jazzistas fazem música.”

Não por acaso Clarice Lispector e Marguerite Duras interessam a ele. Vuong identifica nelas o gosto pelos tempos recursivos. Também se interessa pela literatura japonesa por causa de seus enredos que não se estruturam em torno de um conflito que move as ações.

Vuong, que estudou literatura com Ben Lerner, a quem é grato, diz que também aprendeu sobre a força da literatura nos bares de Nova York, onde artistas e pessoas em situação precária se encontravam para ler.

“Eu via a força da literatura ali, ela punha de pé pessoas que não possuem nada mas que nos breves minutos de leitura ganhavam energia e confiança imensas. Eu também queria aquilo.”

O romance de Vuong nos toma de assalto por falar de um mundo em que as identidades são negociadas entre pessoas destroçadas e a densidade poética de uma língua, e é também um livro belo porque mostra um escritor vindo à tona enquanto narra sensivelmente a própria vida.

Sobre a Terra Somos Belos por um Instante

  • Preço R$ 59,90 (impresso); R$ 29,90 (e-book)
  • Autor Ocean Vuong
  • Editora Rocco
  • Tradução Rogerio W. Galindo
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